

Literatura, Literatura japonesa,
Uma forma para a solidão
Romance de Yuko Tsushima retrata o desajuste de uma mulher tímida que tenta reconstruir sua rotina depois de uma separação
01jul2025 • Atualizado em: 30jun2025 | Edição #95Existe um jeito de contar histórias caracterizado por um perfeito encaixe entre a perspectiva narrativa e o que é relatado. Nesses casos, a escolha pela primeira ou pela terceira pessoa não é só uma questão de estilo ou técnica, é uma lente que filtra a realidade. Território da luz, de Yuko Tsushima, é um desses livros: aqui a primeira pessoa é usada para dar forma ao ponto de vista de uma mulher tímida, que relata a sua rotina e a sua solidão, talvez congênita em certa medida, mas agravada quando se separa do marido.
Yuko Tsushima, pseudônimo de Satoko Tsushima, nasceu em 1947, em Tóquio, e morreu em 2016, na mesma cidade. Território da luz é seu segundo romance e foi publicado originalmente em episódios, entre 1978 e 1979, na revista Gunzo. As suas doze partes são, ao mesmo tempo, autônomas e articuladas entre si e narram um período de trânsito na vida da narradora: começa com a chegada à nova casa onde iria morar com a filha de dois anos depois da separação do marido e encerra-se quando as duas estão prestes a deixar o apartamento.

A cena de abertura é a descrição da nova casa. É um apartamento estranho: o único imóvel residencial em um prédio comercial, tem uma cozinha com o pavimento vermelho e janelas em todos os cômodos, sendo assim “sempre inundado de luz, a qualquer hora do dia”. O aspecto inusual do apartamento se conecta a um atributo da narradora: ela também é estranha, também se sente deslocada, seja por temperamento, seja por ser uma mulher separada com uma criança pequena para criar, sujeita aos julgamentos que inevitavelmente recaem sobre uma pessoa nessa situação — ainda mais na década de 70.
A naturalidade que a autora consegue dar às palavras gera uma voz viva e um rosto de contornos nítidos
Ao longo de um ano e meio, período cadenciado pela sucessão das estações e pelas mudanças na incidência da luz no apartamento, o enredo gira em torno da sensação de ser uma estranha na multidão e dos inesperados alívios advindos de breves cumplicidades, que, num relance, a narradora estabelece com outros desadaptados: mães separadas ou solteiras, bêbados, uma velha andarilha, um jovem inseguro.
Diante do mundo externo e de suas regras ditas e não ditas, a tímida narradora sente ansiedade ou constrangimento pelos julgamentos dos outros, sensação que, por contraste, dá a medida do alívio que encontra quando alguém lhe oferece proteção ou quando se vê numa temporária relação de paridade com outra pessoa desajustada. É como se, nesses breves momentos, aparecesse de chofre uma possibilidade de interlocução, e as palavras que acumula dentro de si em sua vida solitária encontrassem um endereçamento.
Um dos pilares da precisão da primeira pessoa em relatar o tempo da rotina, a ansiedade e o alívio é a linguagem clara e oralizada. O atributo oral, porém, não vem da coloquialidade (vale destacar, no entanto, a sutileza da tradutora Rita Kohl ao escolher usar “tá” em vez de “está” quando a criança fala ou quando a mãe se dirige à criança), mas sim da concretude e da naturalidade que a autora consegue dar às palavras, com uma calibragem tão bem equalizada que gera uma voz viva e um rosto de contornos nítidos, embora não gaste nem meia sílaba com descrições físicas da narradora.
Mais Lidas
A vivacidade da narração também se deve ao modo como o relato dos acontecimentos se mistura a rodeios e a lembranças, reproduzindo assim a maneira como uma pessoa de carne e osso contaria a própria história. Não é só uma questão de fluência do texto, é uma força que dá uma feição verdadeiramente humana à voz que conduz o enredo.
Medo da intimidade
O território da luz é uma zona de trânsito: é o abrigo para a vida imediatamente posterior à separação e para a gradual e atrapalhada adaptação da narradora à nova realidade, até o ponto que parece necessário buscar um novo lugar. No começo da história, a vida sozinha com a filha intimida e a figura do ex-marido também desperta receio. Ainda nas primeiras páginas, ela diz que sentia “medo da intimidade” que tinha com ele. Não é bem um luto por um amor que acaba. O estranhamento inicial parece ter estreita relação com o atributo tímido e desastrado da narradora, que define a “intimidade” como uma companhia que dispensava a obrigação de dissimular: “Fujino era o homem com quem eu tivera mais intimidade na vida. O único para quem quis mostrar meus sentimentos de verdade, sem fingir nada”.
É muito difícil narrar a solidão. Até porque escrever é buscar um outro e a solidão quase sempre é a impossibilidade de compartilhar um pensamento. Tsushima consegue, no entanto, criar cenas que definem a solidão com uma clareza delicada, como os momentos em que a narradora projeta diálogos imaginários na sua fantasia, a sua vontade de voltar ao sonho quando tem que acordar, a dificuldade de fazer até os mais simples pedidos a amigos, a alegria que sente quando encontra alguém para conversar; e também esse jeito de representar um relacionamento que acaba por meio da saudade de ter com pelo menos uma pessoa no mundo um ponto compartilhado de contemplação e memória.
O apuro em construir um ponto de vista do mundo dá forma ao rompimento de um laço humano
Com o passar do tempo, porém, a narradora se sente “incapaz de conectar” a nova imagem do ex-marido com aquela que existia antes (“Essa era a minha transformação”, ela constata). E o apuro da primeira pessoa em construir um verdadeiro ponto de observação do mundo dá conta de transmitir o real significado do rompimento de um laço humano, em suas diferentes camadas e em seus diferentes tempos. Isto é, a dificuldade de se acostumar com a ausência de quem era uma presença cotidiana, o constrangimento que nasce quando passa a ser tão difícil se entender com quem antes era um rosto familiar, o ressentimento, a incompreensão, a vontade de manter distância, o afastamento das pessoas que costumavam fazer parte de uma vida de casal. Até o momento em que a vida anterior começa a parecer remota e é possível absorvê-la à própria história como parte do passado.
Outro aspecto marcante do romance é a relação da narradora com a filha. Além dos julgamentos que enfrenta como mãe separada, a maternidade é caracterizada pela exaustão do cuidado que se mistura ao cansaço de gerenciar as demandas da própria vida. Nessa história, cujo relato da rotina é muitas vezes entrelaçado aos sonhos da narradora, acordar e começar o dia é uma tarefa realmente difícil: uma noite de sono não é o suficiente para descansar, e o medo de perder a hora e ser julgada pelo chefe da biblioteca onde trabalha e pelas professoras da creche da filha se soma à ansiedade que ela naturalmente sente em relação ao olhar dos outros.
A exaustão constante dá um notável efeito de realidade ao cuidado de uma criança. Até porque esse cansaço às vezes se mistura com a frustração pela insuficiência ou pelo julgamento alheio e se traduz em broncas desmedidas e eventuais rompantes de agressividade. Mas não é assim mesmo que acontece? Doar-se a um outro e se sentir sempre em dívida não podem se combinar, de vez em quando, com impulsos agressivos?
Coexiste com esses rompantes um vínculo cheio de ternura com a menina, que ganha materialidade na narração de passeios e de conversas, ou em uma cena em que a narradora, com febre, acorda de um cochilo com uma toalha úmida que a filha colocou na sua testa. Existe entre as duas um desejo compartilhado de encontrar, uma na outra, “uma fonte de alegria”.
Rupturas
Quando encontra o inusual apartamento, depois de uma frustrante busca por um bom lugar para morar, a narradora destaca uma coincidência: o seu sobrenome de casada, Fujino, é o mesmo nome do prédio onde o imóvel se localiza. E, uma vez que o divórcio se concretiza e ela volta ao seu nome de solteira, é essa coincidência que comunica a chegada do momento de procurar uma nova morada.
Ao olhar a casa que está prestes a deixar “bem na hora em que o sol do fim de tarde invadia o apartamento, fazendo tudo cintilar com um fulgor vermelho tão intenso que era sufocante”, ela se sente como alguém que “está a anos de distância de uma cena e não consegue mais se lembrar dela com clareza”. É uma ruptura, como aquela da abertura do romance: se antes era a vida com o marido que acabava, agora é a zona de trânsito que chegou ao fim. Nos dois casos, interessa à autora contar como os fins são percebidos, isto é, o modo como recortam o correr dos dias e separam um antes e um depois, fazendo com que a vida anterior pareça tão distante do novo momento que começa, embora nem faça tanto tempo assim.
Entre as duas extremidades há o ciclo cotidiano da existência: a temporalidade prevalente do romance é a sucessão dos dias num período de exceção. A raridade desse livro tão enxuto e bem-amarrado, aliás, é esse jeito de enlaçar a exceção à norma, a forma como a rotina se organiza em um momento de transição e o modo como uma narradora que se sente alheia ao mundo consegue, do seu lugar à margem, observar a vida com nitidez.
Editoria com apoio Japan House São Paulo
Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.
Matéria publicada na edição impressa #95 em julho de 2025. Com o título “Uma forma para a solidão”
Porque você leu Literatura | Literatura japonesa
Clube de Leitura JHSP + Quatro Cinco Um terá edição especial ao vivo n’A Feira do Livro
Encontro de junho será com o vencedor do Jabuti Oscar Nakasato e debaterá ‘O país das neves’, do Nobel de Literatura Yasunari Kawabata
JUNHO, 2025