

Literatura japonesa,
Quem tem medo de Uketsu?
Fenômeno literário no Japão, escritor mascarado chega ao Brasil com tramas virais de horror e milhões de seguidores
20maio2025 | Edição #94Uma capa branca. Em rosa vibrante, uma planta baixa convida o leitor a um ligeiro passeio por um imóvel comum: salas de estar e de jantar, cozinha, quartos e banheiros, além de despensa, garagem e, talvez, um closet. À primeira vista, uma residência banal. “Mas experimente apurar o olhar e observar com atenção cada canto e você notará por todo o imóvel uma sutil sensação de desconforto”, provoca um narrador.
É assim que Casas estranhas, inquietante romance de mistério do artista japonês Uketsu, encurrala o leitor. Fenômeno editorial iniciado no Japão, com mais de 1,5 milhão de exemplares vendidos pelo mundo, o livro chega ao Brasil pela Intrínseca, em tradução de Jefferson José Teixeira.

Em um bairro residencial tranquilo de Tóquio, uma construção relativamente nova chama a atenção de um casal, prestes a ter seu primeiro filho. Embora iluminada, próxima a uma estação de trem e situada em uma região arborizada, a casa — a primeira delas, como o plural no título do livro já sinaliza — apresenta um detalhe intrigante: na planta baixa, entre a cozinha e a sala, atrás de onde ficaria o sofá, há um espaço misterioso. Yanaoka, o marido, decide pedir ajuda ao amigo narrador, um escritor freelancer especializado em ocultismo. “Devido ao meu campo de atuação, tenho a oportunidade de ouvir muitas histórias de fantasmas e relatos de experiências estranhas”, explica este ao leitor.
À voz do narrador soma-se um fato que ronda todos os lançamentos de Uketsu, em qualquer idioma: o autor é uma persona sem face. Um youtuber anônimo, que sempre se apresenta com o máximo de teatralidade, em vestes pretas — meia sobre o cabelo, blusa de gola alta e luvas —, com uma máscara de papel machê e a voz alterada por um modificador, produzindo um efeito de falsete comicamente agudo. Ou seja, tudo conduz a um envolvimento súbito, imediato, em uma narrativa de mistério um tanto tradicional, se não em estrutura, em termos de efeito. À medida que o leitor é guiado, há a surpresa das descobertas em camadas, ocultas nas quinas da trama — e em cada planta de imóvel.
Na lista de mais vendidos do Japão, o autor superou o tão aguardado 15º romance de Haruki Murakami
Sabe-se que Uketsu é um homem, graduado em economia e grande apreciador de coelhos. Em entrevistas, já disse morar em Kanagawa, a sudoeste de Tóquio, ter vivido no Reino Unido por um curto período durante a infância e ter pais divorciados. Trabalhava em um supermercado quando começou a postar seus vídeos insólitos no YouTube. Um dos maiores nomes da literatura de horror em seu país hoje, Uketsu — do japonês 雨穴, caracteres para “chuva” e “buraco” — acumula 1,74 milhão de inscritos em seu canal, afirma ter crescido navegando na internet na infância e aparenta, como boa parte da geração atuante de creators, pertencer à faixa etária média dos chamados millennials, nascidos entre 1981 e 1996.
Se há seis anos Uketsu era apenas um blogger sem rosto, autor de histórias estranhas no blog japonês Omocoro, o ano de 2025 aponta múltiplas perspectivas para sua escrita. Imagens estranhas, outro suspense em que convida o leitor a decifrar um mistério por trás de desenhos que teriam sido feitos por uma criança, é também um fenômeno de vendas, previsto para ser publicado em mais de trinta países — no Brasil, acaba de ser lançado pela Suma, selo editorial da Companhia das Letras. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, onde o romance saiu em janeiro pela HarperVia, a face oculta do escritor já estampou os principais jornais — nos dois países, Casas estranhas tem lançamento previsto para este mês.
Origem viral
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Vestido como um kuroko, assistente de palco do teatro tradicional japonês, o kabuki, Uketsu também parece gostar de manipular adereços e movimentar pequenos cenários. Em vídeos com milhares de visualizações, transforma aspargos em dedos ou estica fatias de carne e as pendura para secar em um varal. Casas estranhas, inclusive, tem como origem um vídeo publicado em seu canal, em outubro de 2020. Visto 24 milhões de vezes, o mistério imobiliário viral, em que Uketsu e um amigo designer analisam estranhas plantas de imóveis, chamou a atenção da editora Asukashinsha, que convidou o artista para adaptá-lo a um romance. Lançado no ano seguinte no Japão, Casas estranhas teve uma continuação em 2023. Entre os dois volumes da série, Uketsu lançou Imagens estranhas, em 2022, e se viu alçado a best-seller: três dos dez livros de ficção mais vendidos de seu país em 2024 são do escritor desconhecido. No ano anterior, figurou entre os cinco primeiros títulos, superando o tão aguardado A cidade e seus muros incertos (ainda sem tradução para o português brasileiro), 15º romance de Haruki Murakami.
Mistérios opacos
A aura que cerca Uketsu, assim como sua escrita, traz elementos de um tipo de literatura fomentada por criadores de conteúdo em redes sociais. Em suas histórias, o autor combina acessibilidade com recortes históricos — em Casas estranhas, situa o leitor com a menção ao mabiki, infanticídio como método de controle populacional, registrado no Japão até a era Meiji, no século 19 —, além de mistérios intrigantes e opacos que fisgam a atenção.
O romance foi adaptado para um longa-metragem e para mangá, em coautoria com Kyo Ayano. No Brasil, a Panini deve lançar os quatro volumes do romance gráfico também neste ano. Em entrevista ao jornal The Japan Times, Uketsu disse se orgulhar do sucesso entre leitores jovens, muitos dos quais tem em seus romances o primeiro contato com a leitura. Comparado a Junji Ito, mangaká japonês especialista em histórias de horror, e fã do escocês Arthur Conan Doyle, que revolucionou a literatura policial com Sherlock Holmes, o escritor sabe que sua aparência o beneficia. Mais do que isso, faz parte de sua reputação — pseudônimos e avatares, afinal, são onipresentes na internet. Contudo, o que Uketsu tem mostrado, tanto em vídeos quanto no mundo editorial, é que gosta de contar boas histórias. Quanto mais bizarras e enigmáticas, melhor.
Editoria com apoio Japan House São Paulo
Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.
Matéria publicada na edição impressa #94 em maio de 2025.