Literatura japonesa,
Melancolia da transitoriedade
Mais do que saudade, ‘Tsugumi’ transmite com precisão um conceito caro à cultura japonesa: a tristeza pela impermanência e pela finitude da existência
01jun2021 | Edição #46É comum, entre falantes da língua portuguesa, a crença no mito de que a palavra “saudade” seja intraduzível, algo que, a seu modo, implica crer que o sentimento em si seja próprio de uma cultura mais do que de outras. Naturalmente, isso não é verdade. E saudade, tanto a palavra quanto o sentimento, é a constante na narrativa de Tsugumi. A personagem cujo nome dá título ao livro é prima de Maria Shirakawa, narradora-personagem que, apesar de ter deixado para trás a cidadezinha praiana onde cresceu para iniciar nova vida em Tóquio junto dos pais, não consegue se livrar da saudade, não apenas da infância em si, mas da vida litorânea, dos tios e de suas primas. Quando fica sabendo que seus tios pretendem vender a pousada onde ela e a mãe viveram (um tanto de favor) a maior parte da vida, Maria aceita o convite de sua prima Tsugumi para passar um último verão com eles.
A crueldade de Tsugumi não faz da narrativa um ‘thriller’, mas um retrato afetuoso de uma parenta ‘difícil’ que toda família possui
A saudade que move Maria, contudo, é um sentimento agridoce: devido a uma doença crônica que acompanha sua prima desde que esta nasceu, Tsugumi foi mimada e protegida até se tornar maldosa e temperamental, atormentando com exigências e desmandos os pais, a irmã mais velha Yoko e sua prima Maria. “Tsugumi era cruel, ríspida, boca suja, egoísta, mimada e ardilosa. O ar de triunfo que ela exibia, quando descaradamente — no momento oportuno e de modo desagradável — resolvia jogar na cara, sem papas na língua, a pior coisa que a pessoa gostaria de ouvir, fazia dela o próprio demônio”, diz Maria. Ainda assim, a saúde extremamente frágil e a beleza física de Tsugumi fazem com que todos se tornem condescendentes com seus estouros e crueldades.
Mais do que um afeto tolerante, o que Maria desenvolve por meio do convívio — e o que a impressiona e fascina — é, sobretudo, a enorme energia e força da personalidade de Tsugumi, em contraste com sua fragilidade. Ou talvez seja justamente por causa de sua saúde que Tsugumi, a quem se crê sempre à beira da morte e capaz de sucumbir em febres por qualquer esforço, se mantém viva — na base da força do ódio e da raiva.
Melancolia litorânea
Banana Yoshimoto é o pseudônimo da japonesa Mahoko Yoshimoto (seu nome artístico, propositalmente andrógino, foi escolhido pelo apreço que nutre pela beleza da flor de bananeira). Estreou na literatura na década de 80 com Kitchen, já publicado no Brasil e atualmente fora de catálogo, e desde então foi considerada uma das vozes literárias da juventude japonesa — seus livros já foram ocasionalmente classificados como literatura Young Adult. Saltam aos olhos a clareza e objetividade de sua prosa, que mesmo quando formula metáforas ou traça paralelos bastante poéticos se mantém sempre direta e precisa. Seu Tsugumi é dominado pela beleza melancólica da passagem do tempo, em que a transição da infância para a adolescência é uma sucessão de momentos de ócio — “o dia a dia em que se sucedem os passeios pela praia, os banhos de mar e o entardecer”, como diz a própria autora no posfácio a esta edição —, momentos cujo valor só somos capazes de perceber depois que já os perdemos.
Mas a melancolia de Yoshimoto também surge dos sentimentos que agregamos à memória e de como se tornam mais valiosos até mesmo do que a memória em si. Em uma passagem, Maria se lembra da obsessão que as três primas nutriram, na adolescência, por um seriado de TV. O seriado em si lhe deixou impressões vagas, e o que lembra é sobretudo a sensação de euforia na expectativa de cada novo episódio. Quando a série chega ao fim, Maria experimenta pela primeira vez aquela melancolia pela passagem do tempo: “Durante a noite, debaixo das cobertas, senti uma imensa tristeza, como se eu estivesse me despedindo de uma criança que existia dentro de mim. Sozinha no quarto, olhei para o teto e, sentindo o toque dos lençóis ásperos, percebi que naquele momento germinava a dor da despedida”.
Mono-no-aware
Tsugumi é cruel e exigente com todos ao seu redor, mas sua família e mesmo sua prima Maria a veem com afeto tolerante. Logo fica evidente que o temperamento de Tsugumi se desenvolve um tanto como mecanismo de defesa. É a impaciência de alguém que vive à beira da morte, a frustração com possibilidades que nunca serão vividas devido a limitações que lhe foram impostas pelo destino. “Ela sabe fingir inocência e fazer com que a pessoa que a questiona se sinta culpada por pressioná-la”, diz Kyoichi, o garoto que se torna seu namorado. Pois quando Tsugumi finalmente se apaixona, também o rapaz é um arauto da transitoriedade: os pais de Kyoichi constroem o grande hotel que irá acabar com as pousadas locais, e ele próprio, tendo passado por uma cirurgia cardíaca, já conviveu com a possibilidade de finitude.
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A crueldade temperamental de Tsugumi — que a certa altura, num ato de vingança, beira a sociopatia — não faz da narrativa um suspense ou um thriller, mas um retrato afetuoso de uma parenta “difícil” que toda família possui. É a tia amarga, a prima problemática, aquela cuja personalidade forte se torna, talvez pela própria previsibilidade, um elemento cômico e apesar de sua truculência (ou talvez por causa dela) deixa saudade em todos ao seu redor. “Tsugumi roubava descaradamente o picolé da irmã e sempre o engolia de uma só bocada, fazendo-a chorar”, lembra Maria, enquanto toma picolés com sua prima Yoko, para logo em seguida lamentar: “Se Tsugumi estivesse aqui, talvez ela conseguisse apagar essa tristeza com sua poderosa luz. Ela estaria zombando da nossa cara e dando risada, chamando Yoko e eu de idiotas”.
Mais do que saudade, Tsugumi parece transmitir com precisão um conceito muito caro à cultura japonesa, este sim intraduzível, que é o mono-no-aware, a tristeza pela impermanência, a melancolia conformada com a constatação do caráter de transitoriedade da vida. Um sentimento, como diz a narradora do livro de Yoshimoto, que é “como as ondas do mar. Independentemente do que eu estivesse fazendo, ao interromper a tarefa sentia meu peito se encher de saudade mais do que de tristeza. Uma dor que não era de infelicidade, mas que, mesmo assim, era difícil de evitar diante de uma iminente e espontânea partida”.
Este texto foi realizado com o apoio da Japan House São Paulo
Editoria com apoio Japan House São Paulo
Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.
Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.
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