Literatura infantojuvenil,

No silêncio da leitura

Dois livros infantis de José Saramago são lançados para comemorar o centenário do autor português ganhador do Nobel

01mar2022 | Edição #55

Meu pai era feirante. Vendia farinha, arroz, feijão e carvão. Entulhava os sacos no quintal. Uma ou outra pedra de carvão que escapulisse servia para eu desenhar no chão um boi, um sol, um luar. E eu brincava com os pesos métricos de ferro. Com eles e os cereais, postos sobre a balança, fingia que sabia somar. Também anotava números aéreos em um caderno velho. Acompanhava meu pai em algumas viagens. Curtas, mas inesquecíveis. Quando ele saía para repor as parcas mercadorias. Quanta alegria! Ler é recuperar o que se perdeu de vista.

Lembrei-me de meu pai assim enquanto lia Uma luz inesperada, a história do menino Saramago, de doze anos de idade, acompanhando o tio em uma viagem até a feira de Santarém. Foram a pé para vender toda uma criação de “bácoros”. Eu fui junto. Senti a caminhada, avançando pelas estradas “como sabia que faziam nos mares os barcos de piratas de que falavam os meus livros de aventura”.

Companheira e cúmplice é toda literatura. Sei bem da lua de que falou o escritor português: “Saltei para o chão e vim ao pátio: na minha frente estava uma lua redonda e enorme, branca, entornando leite sobre a noite e a paisagem”. Um poeta já em sua ânsia de ver. E, para sempre, guardar o que viu: “Adivinhei que nunca mais veria outra lua assim. Por isso é que hoje me comovem pouco os luares: tenho um dentro de mim que nada pode vencer”.

Não tenho dúvidas de que há uma lua igual a essa, desse livro de Saramago, lá no meu sertão. As ilustrações são do mexicano Armando Fonseca. Intensamente densas e sombreadas, parecem até ter sido feitas com o carvão do chão de meu próprio quintal — toda memória é uma obra aberta.

Também li O silêncio da água. A saber: um menino na boca do rio, “à beira do fundão”, tem seu anzol arrastado por um peixe violento e resolve sair correndo para sua casa para, mais bem equipado, voltar e ajustar as contas com o monstro subaquático: “A casa dos meus avós ficava a mais de um quilómetro […] era preciso ser pateta de todo (ou ingénuo simplesmente) para ter a disparatada esperança de que o barbo iria ficar ali à espera”.

Mergulhado na atmosfera dos desenhos da espanhola Yolanda Mosquera, mais uma vez fui atrás, lá longe, de uma imagem que tenha ficado eternizada em mim. Essa crença de que o mundo é capaz de parar a partir do mínimo movimento de um menino — ondulante e estonteante feito os desenhos de Yolanda. Entre as páginas vivas e coloridas, eis que relembro: meus pés, quando pisavam fundo nos açudes secos de Pernambuco, acreditavam que, um dia, fisgariam um fóssil de peixe pré-histórico ainda vivo. Até hoje espero. E acredito nisso.

“Petrechos”

Aliás, quando chego diante de qualquer narrativa, chego com os “petrechos” que, faz tempo, trago comigo. Sou a mesma criança leitora diante daquele mesmo primeiro livro.

Há quem tenha medo e possa, por exemplo, achar estranhos alguns termos encontrados nas duas histórias: o próprio “bácoro”, “barbo”, “petrechos”. É assim que se escreve mesmo? E mais: “esgalgado”, “marrã”, “guelras”, “isco” e acento diferente em palavras do tipo “ingénuo” e “quilómetro”. Nessas duas belas edições, lançadas pela Companhia das Letrinhas para marcar o centenário do Prêmio Nobel de Literatura, adverte-se aos leitores e às leitoras de pouca idade que “isso se deve ao fato de José Saramago ter nascido em Portugal”, daí as diferenças “no uso, na ortografia e na gramática”.

Vale o aviso. Embora seja sempre essa a mágica. A de duas pessoas que se encontram, de diferentes cantos, dentro de uma mesma viagem, língua e linguagem. No silêncio da leitura, uma luz inesperada. De repente, do nada, avistamos juntos uma palavra que ficou guardada. Da qual a gente nem lembrava. E que, por si só, de tão gloriosa, é o que nos basta.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social.

Quem escreveu esse texto

Marcelino Freire

Escritor, é autor de Contos negreiros (Record).

Matéria publicada na edição impressa #55 em outubro de 2021.