Literatura infantojuvenil,

Lição de voo

Autora de ‘Extraordinário’ estreia nos quadrinhos com história sobre o poder da gentileza em tempos de guerra

07fev2022 | Edição #55

O quadrinho Pássaro branco tem início com uma chamada de vídeo entre Julian, um garoto que está fazendo seu dever de casa, e Sara, sua avó, que contará ao neto como sobreviveu à Segunda Guerra Mundial graças a um menino conhecido como Tourteau (caranguejo, em francês, e também uma forma pejorativa de se referir a deficientes físicos) e seus pais. 

Leitores de Extraordinário, obra de maior sucesso de R. J. Palacio — adaptada para os cinemas em 2017 com Julia Roberts e Owen Wilson no elenco —, se lembrarão de Julian como o garoto que maltrata August Pullman, jovem com uma deformidade facial e protagonista do romance anterior. Julian também aparece em Auggie e eu, centrado em personagens secundários de Extraordinário. 

Na estreia de Palacio nos quadrinhos, o passado de Julian é brilhantemente resumido de modo que a obra funcione para quem entra em contato com o universo da autora pela primeira vez. A mensagem central da graphic novel é novamente a importância da gentileza na luta contra injustiças, algo tão universal quanto uma ave branca como símbolo de paz e liberdade.

Rejeitando um essencialismo que divide pessoas em boas e más, Julian reforça a possibilidade da mudança pela educação e pelo exemplo

Inicialmente relutante, a avó de Julian compartilha com o neto suas lembranças, partindo da vida anterior à ocupação nazista na França, quando era uma menina mimada — em suas palavras — que vivia “feliz e despreocupada como um pássaro”. Tourteau, até então, é apenas um colega de sala, que anda com ajuda de muletas por causa da poliomielite e é vítima de perseguição dos colegas. 

A guerra invade gradualmente o cotidiano, com bandeiras nazistas nas ruas e proibições impostas aos judeus, culminando na invasão da escola por nazistas para levar crianças judias. Nesse momento, chama a atenção a figura da professora que se recusa a deixar seus alunos: a imagem da mulher com a turma sendo levada para um campo de concentração é como uma típica fotografia de classe, só que em um contexto desolador.

Sara escapa graças a Tourteau, cujo nome verdadeiro é Julien. Ele a leva para o lugar em que vive, onde ela passa dois anos escondida em um celeiro, amparada pelo garoto e por seus pais. Proteger uma menina judia naquele contexto significava colocar a própria vida em risco, e de fato eles se arriscam em muitos momentos, repetindo sempre o lema: “Vive l’humanité” (Viva a humanidade). 

A imagem do pássaro branco povoa os sonhos de Sara, que se imagina livre para explorar novamente o mundo além do celeiro onde vive fechada e aterrorizada por morcegos. A relação entre Sara e Julien se fortalece de maneira delicada, inclusive com espaço para discutirem o passado. Aqui, fica clara outra mensagem de Pássaro branco: sempre é tempo de aprender com os erros e mudar, especialmente quando se é jovem.

Sara é assistida pelos pais de Julien até que reencontra seu pai. Quando a narrativa retorna aos dias atuais e à conversa entre Sara e o neto, eles falam sobre a necessidade de lembrar a história para que ela não se repita. O pensamento estende-se a injustiças de todo tipo, como fica claro quando a avó vê no jornal uma manifestação em apoio a refugiados. Julian, aliás, está presente no protesto. 

Transformação

Embora Pássaro branco seja a história de Sara — e é notável a capacidade da graphic novel de retratar a avó, suas reflexões e suas angústias —, cabe a Julian a transformação, ainda em curso, de um garoto que inicialmente é alguém arrependido de suas ações individuais (as vezes em que perseguiu August) a alguém que passa a agir coletivamente contra injustiças. Sob o mesmo lema de defesa da humanidade, rejeitando um essencialismo que divide pessoas em boas e más, Julian reforça a possibilidade da mudança pela educação e pelo exemplo.

O fato de Pássaro branco ter uma mensagem universal não impede que seja uma boa fonte de informação sobre o Holocausto para os jovens. A edição conta com um glossário que explica termos utilizados no livro e seu contexto histórico, além de sugestões de bibliografia e uma lista de organizações voltadas à preservação da memória.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social.

Quem escreveu esse texto

Thais Lancman

Escritora e crítica literária, publicou Pessoas promíscuas de águas e pedras (Patuá).

Matéria publicada na edição impressa #55 em outubro de 2021.