Literatura brasileira,
Vilma Arêas, meio cult e meio secreta
Volume com a reunião da obra literária que a escritora fluminense realiza desde os anos 70 revela o quase ineditismo de sua ficção
04out2023 | Edição #76Certa vez, uma leitora chegou para Vilma Arêas reclamando, indignada mesmo, de um dos seus chamados “contos”. Como é que aquilo poderia ser “conto”? Não tinha história alguma ali, apenas uma sensação estranha no ar, que falava de alguém com insônia e de uma cadeira vazia, balançando no meio da noite. E a escritora nem se dava ao trabalho de dizer se era o vento quem balançava a cadeira. Que confusão! Arêas escutou as reclamações, uma por uma. Não sei que cara fez na hora. Mas aposto que não foi das melhores.
“Expliquei a ela: gostando ou não, tinha uma história ali”, lembrou, numa conversa por telefone à Quatro Cinco Um, há algumas semanas. “Ora, se alguém está com insônia, alguma coisa aconteceu. Tem algo perturbando a cabeça dele, porque insônia não é um estado normal. Se a cadeira está balançando sozinha, é que está faltando alguém, alguém que deveria estar sentado nela. Dependendo do que a pessoa viveu, ela consegue preencher as lacunas. Mas, querendo ou não, tem uma história ali”.
É nos inusitados curtos-circuitos, nos ‘big bangs’ no meio do cotidiano, que reside a força da obra
Sim, tem sempre uma história. O problema é a gente, que aprendeu a ler com um “gps” a guiar as leituras por classificações: isso aqui tem de ser conto, ali é romance, quebrou a linha vira logo poema, por aqui é pura invenção, dobrando a esquina já é mais para o autobiográfico… Como se os textos fossem, assim, rígidos por essência. A obra literária que Vilma Arêas tem realizado desde meados dos anos 70, agora reunida no volume Todos juntos (1976-2023), parece construída para desmontar nosso itinerário de gêneros. Talvez a classificação “contos” implique apenas na extensão curta (ou curtíssima) dos textos.
Mas o que importa mesmo são as histórias escolhidas para serem contadas e, algumas vezes, até desmontadas. E quais seriam elas? Bem, no caso de Arêas, as lembranças da ditadura militar brasileira, a eterna confusão entre vivos e mortos, os big bangs que explodem em meio ao cotidiano, a porosidade do desejo sexual e a infância como território do “será que foi isso mesmo que me aconteceu?”. Tudo isso num diálogo, meio aberto, meio cifrado, com nomes como Clarice Lispector, Ana Cristina Cesar, João Cabral de Melo Neto e Adília Lopes.
A memória invasora
Mesmo com a diversidade de vozes e de temas dispostos em quase meio século de produção, arrisco dizer que o que mais encontrei em Todos juntos foi o problema da memória, essa eterna invasora. É ela quem alfineta os personagens de Arêas, que, de tão perseguidos por lembranças, já mereceram a dedicatória de um dos seus livros. Em Trouxa frouxa, encontramos: “Este livro é dedicado a todos os seus personagens”. Nada mais justo.
Algumas vezes, Arêas insiste, escreve igualzinho ao ocorrido. Ela aponta como exemplo o conto “Que vista linda!”, um dos inéditos (e um dos meus favoritos) de Todos juntos. Em plena pandemia, a mãe decide comprar um apartamento para o filho. “Meu filho e eu somos bem diferentes, mas em muitas coisas, parecidos”, descreve, como quem ergue uma fronteira. Depois de sufocar alguns suspiros pela dificuldade da procura, os dois encontram o endereço certo. O preço está acima do que imaginavam. No entanto, é possível negociar (as donas pareciam loucas para se livrar do imóvel). Com a chave em mãos, começam as visitas dos amigos e parentes, que não se acanham de notar: “É bom, mas não tem vista”. De uma hora para outra, o que era um grande achado, desaba. O apartamento passa a ser tratado como uma daquelas armadilhas do tipo “é o jeito” que tanto caímos, desacostumados com a vida, durante a quarentena.
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A coisa muda quando um funcionário do prédio da narradora leva um aspirador de pó para o filho dela. Ele entra no já desencantado apartamento, olha pela janela, vê o caos do viaduto paulistano Minhocão e não se aguenta: “Que vista linda!”. Sua opinião quebra o feitiço e o arrependimento da compra. Era só preciso que alguém lançasse um outro olhar e pronto: as certezas voaram pelos ares. “Acabou-se a história”, conclui o conto, como uma fábula que dispensa, sem rodeios, uma grande lição de moral.
Um beijo por mês
Outra história que Arêas diz ter escrito “como ocorreu” é “Como se fosse eu”. A narradora, com oitenta anos, toma um táxi e é paquerada pelo motorista, também com oitenta anos. No começo, ela não percebe o flerte, mas as perguntas dele sobre solidão, sobre seus hobbies e o papo escorregadio de “você gosta de dançar? Você gosta de ir ao cinema?” não deixam margem para outra suspeita. De pronto, ficam claras as pupilas dilatadas da passageira, já desacostumada com esse tipo de investida, que acabara
de sair do oftalmologista.
Ele, viúvo, queria uma companheira. Ela, apenas um beijo. Sugere, então, não um relacionamento tradicional, mas que se encontrem uma vez por mês, naquele mesmo ponto, para um beijo. Sim, um beijo por mês. Ele acha a sugestão uma loucura e, assim que termina a corrida, arranca com o carro. “Eu sei o ponto onde esse taxista trabalha, mas evito passar. Mudo o caminho”, conta Arêas, sem dramatizar o dramático (ou o pitoresco) do fato.
Por vezes erótica, Arêas é uma das autoras que melhor expuseram as diatribes dos ‘cidadãos de bem’
A crítica literária Eliane Robert Moraes gostou tanto de “Como se fosse eu” que o incluiu num volume reunindo grandes contos eróticos brasileiros, datados dos últimos cem anos, O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022) (Cepe Editora, 2023).
Erótica por um lado, por outro, é também uma das autoras que melhor expuseram as diatribes dos “cidadãos de bem”, sobretudo depois do golpe parlamentar de 2016. É o que aponta a crítica Flora Süssekind, no ensaio “Gramáticas (auto)críticas das classes médias”, destacando os exercícios precisos de enquadramento de classe encontrados em vários textos de Arêas.
Em seu conto “Na rua”, temos o embate entre uma mulher que acaba de sair do banco e um mendigo na esquina, rodeado por embrulhos, sacolas e dois cachorros, que o aquecem. O mendigo pede dinheiro. Ela dá a desculpa nossa de cada dia: “Espera um pouco, agora não dá”. Ele sussurra um “paulista filha da puta” de volta. Ela escuta e volta para revidar o xingamento. E aí temos o que chamo de big bang plantado no meio do cotidiano. Ela diz: “E o que faz um homem tão forte e tão bonito que não vai trabalhar, fica com essas tralhas por aí pedindo dinheiro?”. O “bonito” dá um nó na cabeça do mendigo. Era tudo o que ele jamais esperava ouvir, ali, naquela situação de penúria radical. E é justamente nesses inusitados curtos-circuitos que reside boa parte da força da obra de Arêas.
Antes de atravessar a rua ainda deu para ver que ele abria os braços, olhava para cima com uma expressão de êxtase, rodando na calçada. O urso ensaiava passos de bailarino, de braços abertos. Os andrajos giravam, o sol acendia a barba e a cabeleira ruiva. As tralhas estavam esquecidas no chão. Os cachorros sentados nas patas traseiras olhavam para ele, perplexos. Era mesmo bonito e tinha virado um passarinho
Assim descreve o conto, para depois espatifar a epifania do “bonito” em sua última linha, com o “enquadramento de classe”, que Süssekind destaca: “Bati em retirada antes que ele levantasse voo. E desabasse na calçada”. Outra fábula também destituída da moral redentora a que tanto estamos acostumados.
Encontramos dinâmica semelhante no recente “O anjo”, que apresenta o diálogo entre um usuário de drogas e uma mulher que, subitamente, tenta ajudá-lo a comprar comida e, por isso, ganha a alcunha de “anjo”. Depois da ajuda, ela começa a sentir um bem-estar súbito. Mas logo é atropelada e, apesar de “anjo”, não voa para lugar algum.
Escritora secreta
O momento que gerou a decisão de reunir a obra literária de Vilma Arêas — formada por Um beijo por mês (2018), Vento sul (2011), Trouxa frouxa (2000), A terceira perna (1992), Aos trancos e relâmpagos (1988), Partidas (1976) e o inédito Tigrão (2023) — foi um daqueles big bangs do dia a dia, que poderiam estar num dos seus contos. O professor de literatura da usp Samuel Titan Jr, organizador de Todos juntos, estava tomando um café com ela certo dia quando deixou escapulir: “Sabe, Vilma, no fundo você é uma escritora meio secreta”. Ela levou um susto com a frase, e ele teve pouco tempo para se explicar. Mas o amigo tinha lá sua dose de razão.
Aos 87 anos, a também tradutora (foi ela quem traduziu o primeiro livro de Anne Carson no Brasil, O método Albertine, em 2017, para a Edições Jabuticaba) e professora titular aposentada do departamento de teoria literária da Unicamp, costuma publicar um livro de ficção meio que a cada dez anos. A maioria deles está fora de catálogo. Vilma Arêas, a ficcionista, é um segredo, por muito tempo compartilhado apenas por um número bem restrito de leitores. Meio secreta e meio cult.
O caráter quase de ineditismo da sua produção fica ainda mais forte pela escolha (acertada) de não reunir os títulos na ordem cronológica, do primeiro ao mais recente. Começamos com o inédito Tigrão e terminamos com a estreia Partidas, livro em forma de um alfabeto enigmático. O jogo tradicional do tempo aqui não faz grande diferença e nem dá as cartas, tal e qual a Nise da Silveira como personagem de Arêas, que “aos dezessete finge ter setenta”. Os anos sopram para outro lado. “Memória pobre essa que só opera para trás”, reclama, sabiamente, alguém num dos seus contos.
Boa parte de Tigrão foi escrita durante a pandemia, com os escândalos do governo Bolsonaro como pano de fundo. O conto que dá nome ao livro fez renascer um personagem que, volta e meia, assombrava as lembranças da escritora (“Quando você vai escrever a história de Tigrão?”, se pergunta a narradora). Tigrão era um membro do esquadrão da morte (“‘matei seis’, se vangloriava”), que ajudou na cadeia o segundo marido de Arêas, o jornalista Fausto Cupertino, quando ele foi preso durante a ditadura. Bandidos e mocinhos aqui se embaralham, e a autora não afasta o confronto que essa mistura pode gerar.
“Era uma história (a do Tigrão) tão simples e, ao mesmo tempo, tão complicada, que um dia eu precisava escrever a respeito. Eu sabia que precisava”, lembra Arêas, nos fazendo pensar naquela sua dedicatória para os seus personagens.
Perto do fim da nossa conversa, Arêas diz que escreve um pouco para se equilibrar ou mesmo para se organizar. Não me atrevo a perguntar o que ela chama de equilíbrio ou de organização. Penso apenas num dos “mandamentos” do seu livro Partidas, que parece exemplar para entendermos Todos juntos: “Renovar o céu, arranjar as estrelas e lavar a lua”.
Matéria publicada na edição impressa #76 em novembro de 2023.
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