A escritora Giovana Madalosso (Renato Parada/Divulgação)

Literatura brasileira,

Deus abençoe a contingência

Com taquicardia, antidepressivos e medo da morte, narradora do novo romance de Giovana Madalosso chega mais perto da vida

09jun2025

Era só voltar para casa depois do trabalho e ela ia a pé. Ouvia música para deixar acabar mais um dia de pequenas decisões desempolgadas. Porém, bem ali na próxima esquina, a vida bateu. Um par de coturnos e outro de tênis interromperam seu caminho, queriam ver o “sovaco peludo” da mulher. O susto foi tão maior que seu corpo que Maria João desmaiou.

Assim começa a história que Giovana Madalosso nos conta em Batida só. Ou melhor, quem conta é Maria João: ela acordou no hospital e entendeu a causa biológica do desmaio quando recebeu o diagnóstico de arritmia ventricular grave. Soube que era um quadro de risco e que, além de procurar um especialista, precisaria usar uma medicação para evitar a taquicardia.

Maria João salvou-se de um estupro no mesmo golpe que a fez se encontrar com uma doença grave. Rendida pela contingência, deixa o leitor acompanhar seu jeito de receber a doença — e a vida que a doença traz consigo.

A fineza da escrita de Madalosso nos enfia para dentro do livro e o texto abre muitas camadas de vida. Os marcadores de raça e classe estão menos explícitos do que em Suíte Tóquio (Todavia, 2020); Em Batida só, radiografando a distribuição do poder no jogo da vida, a autora se concentra nas questões de gênero e de classe que decidem destinos. Aquele humor cortante que vem com Madalosso desde seu primeiro romance, Tudo pode ser roubado (Todavia, 2018), dá notícias da nossa época e me fez rir em várias situações. No final de cada risada, porém, estou diante da solidão dos hábitos de classe que os laços precarizados do mercado impõem. A literatura de Madalosso faz a crítica chegar aonde dela não podemos mais nos desviar: estamos ali, interpretados em nosso elitismo de classe e cultural.

É com esses termos que Maria João nos envolve na história de sua doença. E é tanta coisa sobre si mesma e sobre sua própria importância que é inevitável encostar em suas defesas. O tratamento para evitar uma cirurgia de risco incluía desviar de tudo que fizesse o coração acelerar: precisava sair da linha de frente do jornal e passar três meses longe da própria vida. Voltou para a cidade do interior onde morou quando menina e se hospedou na casa vazia em que a avó viveu. Para não ser afetada pelo medo que a distância não segura, blindou-se com antidepressivos.

O humor medicalizado de Maria João se imprime no texto, conseguimos encostar no véu que a separa da sua experiência. Ela se estranha, descreve com tal precisão a zona cinza que passou a habitar para evitar a morte que, se você tiver um entusiasta da psiquiatria biológica por perto, recomendo que lhe indique a leitura do que os neurotransmissores de Maria João foram capazes de escrever.

Sob a perspectiva do testemunho dessa “Homo chapiens” (como batizou sua nova forma de vida), Maria João conta que, desde menina, usava a estratégia de abandonar as histórias antes do fim para evitar se emocionar.

Da mesma forma que me tornei uma mulher que só falava inglês no present tense e só sabe nadar crawl, também me tornei uma pessoa que só sabe a história dos filmes até a metade.

Trecho de Giovana Madalosso “Batida só”

Saiba mais sobre o livro

É impressionante como Madalosso encontrou no seu estilo a escrita da experiência no corpo de Maria João. Para escrever a taquicardia no texto sem usar palavra, encontrou uma forma gráfica desobediente para contar o que a curta norma culta não prescreve, a experiência no corpo. Fiquei suspensa, escutando a escrita daquelas batidas. Eram as batidas de solidão me trazendo a pergunta que me visita todos os dias na cadeira atrás do divã: como esse sujeito que está falando vai escrever o real do corpo em cada uma de suas incontáveis versões de fim?

Desestranhar

Madalosso mostra que é preciso inventar para abrir possibilidades no impossível de evitar a relação com os fins que cercam os dias dos vivos. Mas… e Maria João? O que poderia fazer com sua angústia além de anestesiá-la?

Aconteceu que o uso dos antidepressivos foi interrompido, e Maria João finalmente se rendeu às tentativas de encontro empreendidas por Sara, a amiga de colégio que ficou a vida toda na cidade do interior. Deus abençoou a contingência: “Sara do Perpétuo Perrengue” é, para a sorte de Maria João, a mãe de Nico, que é a pessoa mais legal que você vai conhecer nessa história. É com eles que Maria João, já sem esperar muito do tratamento que evitaria a cirurgia, viaja para uma cidade de fés. Conforme o torpor abandona seu corpo, ela vai aprendendo com Sara e Nico: “pelo que eu estava vendo, amar era estar no outro. E apesar das dores, era melhor do que apodrecer em si mesmo”.

Maria João se aproxima de Nico, rende-se ao que nele a afeta. Nico é uma criança de dez anos que vive a morte. Quando ele começa a falar, outra forma de se relacionar com uma doença ganha lugar no texto. Com livros, lições de casa, cuidado e duas moedas, Nico dá seus olés e faz bordas no buraco vazio da morte. Talvez o linfoma de Nico o colocasse mais perto da morte do que a arritmia de Maria João? Quem saberia?

O fato é que esse menino se torna a melhor e mais doce companhia para Maria João. Em seu modo de se relacionar com a experiência, mais apaziguado que ela diante das ficções sobre o viver, Nico sabe que os adultos são pessoas que “escolhem uma história pra acreditar. Depois acreditam nela com toda força. E às vezes até ficam bravos com quem não acredita”. Nico é alguém que pode falar sobre o fim enquanto deseja viver, e com ele Maria João aprendeu que as respostas diante do inexorável podem variar.

Não é de hoje que encontro na literatura o que chamei de “recurso à criança para dizer o indizível”. Foi com ele que Madalosso se disse em Batida só. Mais do que isso, porque o que Maria João e Nico podem juntos faz de seu livro uma história de amor.

Maria João achava que sua doença era “a maior solidão de todas”, mas, se alguém, na volta daquela viagem, perguntasse o que ela faria com sua doença, talvez ela pudesse responder o que não sabia antes. Desestranhar a morte permitiu a Maria João chegar mais perto da vida. Nessun Dorma. E a minha aposta é que ela responderia que faria amigos.

Quem escreveu esse texto

Ilana Katz

É psicanalista e pesquisadora do Latesfip da USP.