O escritor Marcelo Rubens Paiva (Renato Parada/Divulgação)

Literatura brasileira,

Carta aos filhos

Por meio das histórias do início da vida de seus meninos, Marcelo Rubens Paiva faz um panorama de seu país e da própria família

22maio2025 | Edição #94

Filhos são avassaladores. Se em Ainda estou aqui (Alfaguara, 2015), romance adaptado às telas e premiado com o Oscar de melhor filme internacional em 2025, Marcelo Rubens Paiva trata da perda dos pais, em seu romance recém-lançado — O novo agora —, ele aborda a comoção diante da paternidade.

O novo agora retoma a estética inaugurada em 1982 com Feliz ano velho (Alfaguara), com idas e vindas temporais executadas em transições sem solavancos, por maior que seja a lacuna de assuntos e períodos. Tornar-se pai é o fio condutor, entremeado pela chegada da direita ao poder no Brasil e as consequências disso, inclusive durante a pandemia de Covid-19.

O “fluxo de euforia” vivido pelo escritor graças ao nascimento do primeiro filho, em janeiro de 2014, é apresentado já nas páginas iniciais. Encadeiam-se então os momentos finais da gestação, a ida à maternidade, a espera, o desenrolar do parto. “Ali estava o meu primeiro filho. Ali estava uma mãe das mais felizes da galáxia. Ali estava o pai mais feliz da galáxia.” “Rios de lágrimas” arrematam a cena.

O gênero “carta aos pais”, que não existe oficialmente na literatura, costuma ser identificado academicamente pela escrita memorialista da relação de um filho autor, ou filha autora, com aqueles que o criaram. Tem como representante máximo o acerto de contas em Carta ao pai, de Franz Kafka, de 1919, e grandes exemplos contemporâneos como A morte do pai: Minha luta 1, de Karl Ove Knausgård (Companhia das Letras, 2009), As pequenas chances, de Natalia Timerman (Todavia, 2023), e Essa coisa viva, de Maria Esther Maciel (Todavia, 2024).

Tornar-se pai é o fio condutor, entremeado pela chegada da direita ao poder no Brasil

O nicho “carta ao filho”, por sua vez, embora mais raro, tem pelo menos dois expoentes de relevância, ambos chilenos: Paula, de Isabel Allende (Bertrand Brasil), publicado pela primeira vez em 1994; e Literatura infantil: cartas ao filho, de Alejandro Zambra (Companhia das Letras), lançado em 2023. Endereçado à filha Paula, que lutava contra uma crise súbita e grave de porfiria, o livro de Allende funciona como uma carta de despedida, já que a destinatária morre no final. Zambra, em contrapartida, escreve para dar as boas-vindas ao filho recém-nascido, e o embala ao longo da trama.

No caso de Paiva, que já havia visitado a carta aos pais com Ainda estou aqui, há no livro novo um caminho de carta ao filho muito semelhante ao escolhido por Allende. Ainda que não esteja dizendo adeus, e sim “bem­-vindos”, é por meio das histórias do início da vida de seus meninos que o autor faz um panorama de seu país e da própria família, assim como fez a autora chilena: “Escute, Paula, vou contar uma história para que você não se sinta tão perdida quando acordar. A lenda da família começa em princípios do século passado”, dizem as primeiras frases do romance de Allende.

Em O novo agora, Paiva escreve:

Fiquei com você nos seus primeiros minutos de vida. Sozinho. Eu tinha tanto a dizer. Contar da sua família, desde o seu bisavô, que veio do sul da Itália. Ou da sua bisavó, fugindo do norte da Itália porque o pai era anarquista procurado. Se conheceram em São Paulo. Comecei a conversar. Falei bastante com você. Você ficou de olhos abertos, via tudo e tentava alcançar a lâmpada com as mãos.

Crônica de uma vida

O novo romance é, deste modo, uma autobiografia e ao mesmo tempo uma biografia de dois filhos, protegidos no anonimato de seus apelidos carinhosos, Loirinho e Moreno. Para Brigitte
Diaz, presidente da Association Interdisciplinaire de Recherches sur L’Épistolaire e estudiosa da correspondência de escritores, a carta na literatura tem uma vocação diarística e autobiográfica, “já que se trata de dar nela notícias de si e de nela apresentar o cenário de seus dias”. É, ao mesmo tempo, “crônica de uma vida e registro da alma”, como diz em seu O gênero epistolar ou o pensamento nômade (Edusp, 2016).

A supressão do “eu” predomina em O novo agora, nas referências aos meninos (“Em todas as noites em que estava na rua, ficava ansioso para voltar e colocar o moleque para dormir”). Mas também escapam, aqui e ali, alguns delicados pronomes e vocativos (“Deixa eu me enganar e imaginar que somos parecidos, que você era a cara do meu pai, tinha meu pé, minha mão, meu humor, sobretudo meu mau humor, meu gosto musical”). Ou ainda:

Filho, aninharam você no colo dela, deu para ela ver a sua carinha iluminada (branco como um papel, careca, mas ruivo, com duas lanternas turquesa radiantes, os olhos). Depois, nos levaram para outra sala, eu e você. Precisavam cuidar da mãe que tinha sofrido por horas. Deu tudo certo.

O estilo escolhido em O novo agora autoriza escusas que talvez não fossem possíveis em uma autobiografia ortodoxa. Amandine Aurore Lucile Dupin, romancista francesa do século 19 conhecida pelo pseudônimo George Sand, diz em seu clássico História de minha vida (1855): “Sempre me prometi não morrer sem ter feito o que sempre aconselhei aos outros fazer para si mesmos: um estudo sincero de minha própria natureza e um exame atento de minha própria existência”.

Paiva, séculos depois, parece ter acatado a sugestão de Sand. Relembra por meio dos filhos, com quem trava diálogos encantadores, episódios como o do acidente que o deixou tetraplégico aos vinte anos de idade, após saltar de uma cachoeira e bater a cabeça.

Por vezes perguntam, curiosos: — Por que você caiu numa pedra? Por vezes, perguntam com raiva: — Por que você TEVE que cair numa pedra?

O estudo sincero e o exame atento de Paiva seguem quando ele diz:

Todo escritor sabe que escrever sobre si é escrever sobre como desejamos que nos vejam. Ou, pior, como acreditamos que nos veem. Ou, pior ainda, como acreditamos que somos.

A paternidade, confessa o autor, lhe trouxe, além de euforia, a falta de modéstia. Assim, ele ainda relembra seus “causos” com vaidade, como fazia quarenta anos atrás em Feliz ano velho — a diferença é que agora o faz com mais maturidade estilística. Paiva também fala sobre como é ser uma das estrelas de um bloco de Carnaval famoso, e de como são notórias suas fases “de boêmio a casado” e “pai cinquentão”.

A obra fala de algo difícil de descrever, mas que encontra definições simples e ternas

Mas os momentos de fragilidade, por sorte, também são compartilhados em O novo agora. O escritor, que estará n’A Feira do Livro 2025, evoca suas passagens pela Festa Literária de Paraty, a Flip, a começar pela primeira, em 2014. Na mesa para a qual fora convidado, Paiva tinha a tarefa de ler um trecho inédito do livro que começara a escrever meses antes, e que se tornaria Ainda estou aqui.

Uma crise de choro, no entanto, o impediu de continuar (“Chorei de pena do meu pai, da minha mãe, de tanta dor causada por conta de uma estúpida ditadura”), ao que foi aplaudido de pé pela plateia. Ainda comovido, mas recomposto, deu conta de seguir. A experiência deixou um borrão na memória e uma sensação de choque pela própria reação. “Um filho tinha nascido e era a cara do meu pai. Meu pai não o conheceria”, escreve, como que tentando explicar a si mesmo o que tinha acabado de viver.

Em contraponto a um autocentrismo ocasional, aparecem eventos em que o autor não é o grande herói — e, em extremos, beira o vilão. É um bom respiro, que engrandece a trama com histórias ricas. Dois destaques são o relato da tentativa de assalto ao amigo dramaturgo Mário Bortolotto, que levou dois tiros em 2009, e o retorno de Paiva à Flip, em 2015, quando sua performance como mediador o colocou em uma enrascada e ele foi acusado de se comportar de maneira machista.

Nuances narcísicas

O novo agora brilha ao esmiuçar a paternidade e seu consequente arrebatamento, e consegue ilustrar com afeto o reforço dos laços do autor com os pais, o deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura, e Eunice Paiva, advogada e ativista pelos direitos humanos. Porém, quando se afasta de sua missão epistolar para entrar mais fundo nas nuances narcísicas da autobiografia, toma decisões mais arriscadas.

Paiva fala sobre o exercício da maternidade em vários trechos. Passa da reverência inicial, quando considera “poético”, “sereno” e “solene” o modo como escolhe nomear a então esposa, para uma espécie de ranço com que tenta (conscientemente ou não) ganhar a simpatia do leitor. Se O novo agora é uma carta aos filhos que, supõe­-se, um dia será lida pelos destinatários, será esta a melhor maneira para a defesa de uma única versão da fragmentação do casamento dos pais?

Como benefício da dúvida, considera­–se que a intenção não é machucar nem expor, mas buscar uma expiação das culpas e sua consequente paz de espírito, meta comum de quando pais e mães envelhecem. Fica, de todo modo, caracterizado como o único deslize nomeável de uma obra que, com tanta destreza, fala de algo difícil de descrever, mas que encontra definições simples e ternas:

Como amamos os filhos, e como eles nos amam. É assustador. […] Mudam a gente. Enxergam os nossos piores defeitos, a todo momento, mas eles nos perdoam rapidamente e nos aceitam.

Quem escreveu esse texto

Marcella Franco

É jornalista e escritora.

Matéria publicada na edição impressa #94 em maio de 2025.

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