Literatura brasileira,
As tantas margens do rio
Em romance de estreia de Stênio Gardel, protagonista analfabeto carrega carta do homem por quem se apaixonou no sertão nordestino
27maio2021 | Edição #46Raimundo Gaudêncio de Freitas. É o nome do protagonista que abre o ótimo A palavra que resta e que o vê pela primeira vez, aos 71 anos, grafado com “traço incerto, arredio ao toque do papel”. A conquista do alfabeto, a entrada no mundo da escrita pelo próprio nome, inaugura a possibilidade de narrar a si mesmo da qual é fruto o romance de Stênio Gardel. Não que a oralidade não permitisse antes a narrativa, mas é “agora que conseguia colocar as palavras para fora, porque dentro elas alvoroçavam a cabeça, engasgavam a goela. Não podia mais ficar assim. Tinha que lhes dar um corpo próprio, só delas”. A procura pela palavra é tentativa de elaboração e também busca pela identidade e pela própria história, que se descortinam enquanto assimilação das letras. É assim que o narrador em terceira pessoa vai, aos poucos, entre outros tempos e outras vozes, cedendo espaço à primeira: Raimundo aprende a escrever e vai podendo costurar sua narrativa.
Mas por que aos 71 anos, se desde antes ele tinha o desejo de aprender? Desde cedo havia o trabalho na roça e também o embate entre desejo e realidade. Em um sertão nordestino semeado de objeções, Raimundo se apaixona por Cícero, que, “feito a cruz, começava com c, como coração e cu”. Os dois homens vivem seu amor em segredo até que o pai de um deles descobre. O que resta, além das marcas de cinto nas costas, é uma carta, que Raimundo ainda não sabe ler.
A linguagem apurada e crua nos leva ao futuro que é hoje e ao passado, simbolizado pela cruz à beira do rio. O símbolo da morte incrustado na margem remete a outra história de amor interdito, ocorrido na mesma família, e também à impossibilidade de se assumir, ou ao preço que tal inviabilidade cobra. As remissões a Guimarães Rosa são inevitáveis, não só à encruzilhada verediana em que Raimundo sempre se vê, mas também, quase explicitamente, à terceira margem do rio: entre pai e filho, “águas violentas dificultavam a aproximação, que só acontecia quando se afogavam os dois”. É também ali, no mesmo rio, que, pela última vez, Cícero e Raimundo se encontram, “um de frente para o outro. O rio correndo por eles”, que então mergulham “nas águas antigas do mundo, no líquido embrionário do homem”
Na terra de Raimundo, vida e desejo se confundem, “a vontade da vida toda, que já passou e ainda vai passar”. A terra de Raimundo não é o sertão, ou por enquanto não pode ser. Seu lugar é onde cabe o desejo, onde se realiza sua vontade, ainda que nem mesmo dentro dele haja conciliação. Contar sua história é tentar separar “a voz que afaga” da “voz que afoga”.
Suzzanný, uma mulher trans, é quem oferece a Raimundo outras formas de lidar com o medo
É a mando da mãe, não do pai, que Raimundo vai embora de casa, depois de ter esperado em vão por Cícero no rio, diante da cruz. Analfabeto, submete-se a trabalhos que continuam envergando a coluna já marcada; como chapa de caminhão, vai de cidade em cidade, carregando a carta nunca aberta e o desejo por homens, que aprende a saciar em obscuras salas de cinema pornô, retratadas com linguagem tão sublime quanto o sertão da infância. É a mesma voz que narra o culpado sexo oral com um desconhecido em um quarto imundo e o sorriso diante da história contada na fogueira. É uma voz que comporta contrastes, que sustenta perguntas e indefinições e que às vezes entende que carrega soluços que vêm de fora, impostos por um mundo em que é errado um homem desejar outro homem.
Um dos mais significativos pontos de convergência entre a censura introjetada e o desejo que a questiona é a passagem em que Raimundo agride Suzzanný, figura que inicialmente parece ameaçá-lo. O monólogo interior ilustra aí o embate ancestral com ele mesmo, entre expectativa paterna e sonho, atualizado numa violência que acaba por se exteriorizar. Suzzanný, mulher trans que não tem vergonha de ser quem é, acusa Raimundo de ter saciado seus desejos nos sujos cinemas pornôs, e o faz na frente dos homens de quem ele cotidianamente esconde a homossexualidade. Raimundo então a agride fisicamente, chuta com raiva seu corpo híbrido, perguntando-se, no momento mesmo da violência, se o faz por ela ser igual ou por ser diferente. A contradição continua tecendo a narrativa, pois é ele mesmo quem a socorre, como se, a partir de então, reconhecendo-a tanto como igual quanto como diferente, ele passasse a reconhecer a si próprio.
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A sensação de desvio que funda a angústia de Raimundo aparece na própria gramática. Há palavras e sentenças que subvertem a regra de espaçamento do parágrafo, como se fossem intrusões de espontaneidade, golfadas do inconsciente que ele não consegue mais reprimir. Após a contenda com Suzzanný, a interlocução com ela se insubordina à mesma regra, aparecendo sem parágrafo, alçando-a, também gramaticalmente, à condição de igual. Iguais são os que assumem e vivem o desejo; iguais são os que podem ser diferentes. Suzzanný, que mais tarde se tornará sua companheira de casa, é também quem lhe oferece outras orientações, outras maneiras de se portar diante do medo, da coragem, da vergonha e da culpa — os pontos cardeais de sua cruz.
Carta como utopia
Ricardo Piglia escreve que a correspondência em si já é uma forma de utopia, pois uma carta é sempre uma mensagem para o futuro. Isso parece ser verdade múltiplas vezes em A palavra que resta. Dentro da carta que Raimundo hesita em abrir não há apenas uma mensagem, mas o próprio futuro. Mas futuro que dura a vida inteira se torna passado, assim como silêncio portado por carta não lida se torna vazio. Um vazio que só a palavra do próprio romance poderá habitar.
Uma das cenas que compõem a mitologia da adolescência de Raimundo é a de uma cheia, provável transbordamento do rio cujas águas testemunharam momentos cruciais. A família dele e a de Cícero se empenham em salvar pessoas e pertences. Poderia ser trágico, mas o tom da narrativa aí é nostálgico. Antes, havia cheia; agora, o vazio, que só pode ser ocupado pela linguagem que tateia, que busca, que vigora enquanto procura. Diante da carta fechada nas mãos de Raimundo, no agora em que se pode escrever e ler, um Cícero ausente exclama que seu encontro “vai ser um temporal, uma cheia! vai devastar tudo, passado, futuro”.
Que palavras podem, afinal, restar em um romance cerzido com as que foram ditas e com as que não serão? Talvez as palavras escritas; talvez as que nunca serão lidas, portadoras de um segredo universal e não revelável: o do não acontecido; o impossível que também nos constitui; o nunca em que passado e futuro enfim se encontram.
Este texto foi feito com o apoio do Itaú Cultural.
Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.
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