Literatura brasileira,
Tantra e outras expansões
Jornalista e crítica de arte, Iara Biderman estreia na ficção com contos que multiplicam o significado de cada palavra
23ago2024 • Atualizado em: 30ago2024 | Edição #85Em “Teses sobre o conto”, Ricardo Piglia atesta que todo conto conta duas histórias. Em Tantra e a arte de cortar cebolas, estreia na ficção da jornalista e crítica de arte Iara Biderman (editora desta Quatro Cinco Um), a máxima é levada ao mínimo, pois são as palavras, mais que as histórias, que se prestam a carregar uma duplicidade.
Tanto por meio de detalhes que mostram além de seu primeiro sentido — o vermelho de um joelho ralado apontado para uma mulher significando, por exemplo, uma acusação e o anúncio de uma violência —, quanto por meio de refrações, temos notícia de que, nesta coletânea de contos, nada é gratuito, tudo é pensado. “E não foi por causa do mosquiteiro, a médica garantiu, bebês não sufocam assim. Coração”: aqui, “coração” pode ser o do bebê morto, o da protagonista, desamparado, ou simplesmente a maneira com que ela já vinha chamando o marido desde o começo do parágrafo.
Os contos se conectam de outras maneiras além da multiplicidade do pequeno. Há rimas de cores, como o mesmo joelho vermelho de “Natal em casa” dialogando com as unhas e sapatilhas vermelhas de “Roubadas”; há mundos e tempos que colidem, às vezes silenciosa, às vezes sexual, às vezes tragicamente. Em “Fim de feira”, a magia das plantas é esmagada pelo contemporâneo, como um parêntese feito de imagem: “Amassou o buquê aromático entre o guarda-chuva e a agenda, não cabia mais nada dentro da bolsa, tchau, estou com pressa” ; em “O que fazer em Estrasburgo”, a colisão é mais explícita, embora jamais excessivamente explicada — uma rave contemporânea dialoga com uma epidemia de dança no ano de 1518, que por sua vez dialoga com a ameaça a Karen, de outro conto (“Roubadas”) de não conseguir mais parar de dançar.
A mesma Karen protagoniza cenas que, fractais, reproduzem as contradições que movem a coletânea:
[…] casas habitadas precisam de proteção. Karen entraria numa delas para uma aguinha, broinha, conversinha, qualquer forma quentinha de vida. Não sabia onde estava.
Aqui, notamos o contraste entre o aconchego portado pelo diminutivo e o desabrigo de se viver em uma São Paulo desolada, amplificado pela mítica sapatilha vermelha calçada por Karen que, como num conto de fadas, deixa cair migalhas para conseguir encontrar o caminho de volta (que, afinal de contas, não há).
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Se a difícil, ainda que banal, tarefa de cortar cebolas é chamada enfim de arte, outros objetos também ganham características que já eram suas, mas éramos há pouco incapazes de ver. Em “Fim de feira”, o peixe é o “cadáver deitado sobre o gelo moído” que sempre foi. É chamando as coisas pelo nome que esses nomes se ampliam e podem ser dissecados, em todos os outros sentidos e nuances e refrações que uma palavra traz. Palavras às vezes tão velhas que viram novas: “mafagafos”, “baboseira”, “birosca”, sacadas do baú do qual saem resplandecentes.
A oralidade específica, bem nuançada no universo ficcional de cada conto, estabelece diferentes mundos com linguagem própria, e é a partir de cada qual que a tal duplicidade de palavras se instaura. Em “Lavanderia”, uma “máquina de lembrar” remete à cotidiana máquina de lavar; a protagonista, “se não conseguia esquecer os detalhes, era melhor juntar as peças [da memória, de roupas] soltas”; roupa se confunde com disfarce, engano, em “era mentira, uma dessas roupinhas comuns da memória” quando ela não se lembra, ou não quer se lembrar, diante de um juiz, que deixou o cônjuge e os três filhos trancados em casa — como se o mote do conto fosse a grande e rasteira metáfora, não pronunciada, de lavar roupa suja.
Em “Guia de bolso para viagens do lado de lá”, somos lembrados de que “O lado de lá está mais perto do que a maioria das pessoas imagina”. E, se esse lugar é específico, o da vivência plena de uma sexualidade interditada pelo que por muito tempo se entendeu como tradição, em Tantra e a arte de cortar cebolas é possível expandir o “lado de lá” para outros contos, outros significados, oferecidos pela própria ficção.
Duplicidade
Biderman estreia com pena firme, de quem vive rodeada de palavras, tem familiaridade com elas e brinca com seus sentidos e justaposições, o que fica nítido em: “Verdade, era mentira. Ela passava horas na varanda procurando o barulho do mar”. “Verdade” e “mentira” se combinam aqui para amplificar o absurdo empunhado por uma personagem que procura algo (o mar) onde jamais estará (pois a cidade onde vive não é litorânea), como, talvez, procure a felicidade no casamento. “Você chegou ao seu destino”, diz o Uber, e sempre de fato se chega ao ponto de convergência dos dias de uma vida; “soube de uma pessoa que encontrou o amor da vida no uber. Era passageiro”. A pessoa ou o amor?, nos perguntamos ao ler. As personagens ficam sem essa, mas com um buquê (aromático) de respostas para perguntas que não haviam ousado fazer. A sensação é a de que as mãos de todos eles é pequena, fraca demais para segurar o tamanho de sua verdade.
Em “Espécies de apartamentos” (a duplicidade instaurada já no título), fala-se de miniaturas:
No cachepô, [o girassol] parece criança vestida com roupa de adulto. Anão. Não é o terno do pai, o sapato da mãe. São roupas tamanho infantil, na medida exata do corpo pequeno, mas a vida lá dentro apertada, pedindo baixinho para sair, arrebentar os botões.
Biderman estreia com pena firme, de quem vive rodeada de palavras e tem familiaridade com elas
E o conto mesmo desponta como miniatura de formas literárias mais amplas; ou como miniatura da própria vida, cujos finais divergem — às vezes sendo meras e surpreendentes interrupções.
Transeuntes solitários, namorados perversos, patroas condescendentes, ressentidas pela própria culpa, são exemplos de protagonistas que têm, em geral, uma abertura enviesada para o mundo. No caso das últimas, enxergamos o preconceito disfarçado de disposição, o ressentimento atenuado, transformado em amargor e insegurança.
É primordialmente através do fluxo de pensamento das protagonistas de cada conto que se revela antes a atmosfera e depois o contorno mais sólido do contexto, com peças que no entanto nunca deixam de faltar. E a atmosfera é de tensão, o insólito esperando atrás do cotidiano, seja na forma da concretização (às vezes só sugerida) da violência, seja na forma da concretização do desejo. Ou jamais se concretizando em coisa alguma.
Entre cabelos que caem e objetos que se perdem, há outras coisas extraviadas: os sonhos, os planos, uma ideia preconcebida de felicidade e realização. “Sempre quis ter cachorro, mas nunca”, afirma a narradora de “Fuga em dó maior”, e há coisas demais por detrás desse advérbio sem verbo.
A literatura mesma pode ser “uma manteiga derretendo o tempo, tanta coisa para fazer e a fervura lenta de um mundo sendo criado”, diz o conto que dá título ao livro. E surge, como mostra cada personagem de Tantra e a arte de cortar cebolas, da distância entre o que somos e o que podemos, queremos ou devemos ser.
Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024.
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