Literatura,

I shot the sheriff

Atentado contra Bob Marley é o ponto de partida para um mergulho na violenta história da Jamaica

09nov2018 | Edição #3 jul.2017

No dia 3 dezembro de 1976, em Kingston, no coração da Jamaica, dois dias antes de Bob Marley fazer aquele que ficaria conhecido como o “show da paz”, sete homens invadiram a sua casa para matá-lo. No pátio, um deles encontrou Rita Marley, sua mulher, e acertou sua cabeça — não com uma coronhada, mas com um tiro. 

Era o primeiro de mais de cinquenta disparos naquela noite, que acertaram todos os membros da banda The Wailers, o empresário de Marley (cinco deles no abdômen) e o próprio cantor, atingido por um balaço no peito, a poucos centímetros do coração. Ninguém morreu. E Marley ainda fez o show, apesar de baleado e com curativos — além de uma canção sobre o episódio, Ambush in the night, de 1979.

Reza a lenda que o próprio Jah, o deus rastafári, teria intercedido em favor de Bob e principalmente de Rita, que se safou de modo inacreditável: o projétil ficou alojado entre o crânio e o couro cabeludo, e ela segue viva até hoje. Por outra teoria, mais cética, os criminosos estariam tão loucos de cocaína que não souberam fazer direito o serviço, atirando a esmo, sem pontaria. Seja como for, mais de quarenta anos depois, o episódio é permeado de mistério e de mal-entendidos.

O jamaicano Marlon James voltou à cena do crime para escrever o romance Breve história de sete assassinatos, vencedor do Man Booker Prize em 2015, que acaba de sair em ótima tradução de André Czarnobai, o Cardoso. À maneira de um reggae que “pega um mito e transforma em algo seu, com uma nova letra sobre uma base já conhecida”, como diz um dos narradores, a história também poderia ser pensada assim: “Suave e sensual, mas também brutal e crua, como um blues do delta superpobre e superpuro”.

O título do livro, no entanto, soa enganoso: não se trata de uma breve história, mas de um romance que atravessa longos quinze anos da conturbada e violenta história da Jamaica (de 1976 a 1991), e que acompanha momentos da vida de 76 personagens, nomeados em um listão no início do volume, para que o leitor não se perca. E tudo isso distribuído em 736 páginas, das quais pelo menos umas duzentas são gíria e palavrão — termos como “arrombado” e “cu cagado” dão o tom do “inglês tosco” do autor, como ele mesmo diz, em contraste com o inglês britânico ensinado nas escolas durante o período da colonização.

Centenas de assassinatos

Também não são apenas sete assassinatos, mas centenas, talvez milhares. “Assassinatos não precisam de motivos. Isso aqui é favela”, avisa logo Bam Bam, o insano garoto que na abertura assiste à morte de seus pais. Uma das leituras possíveis do título é que os sete assassinados são justamente os assassinos que invadiram a casa de Bob Marley. Afinal, esta é uma das páginas mal contadas da história: onde foram parar aqueles homens?

O romance se dedica a especular sobre o paradeiro deles, antes, durante e depois do crime, deslocando o foco do grande personagem do livro — Bob Marley, referido apenas como Cantor, como uma espécie de deus que não pode ter seu nome dito em vão — para uma série de figuras secundárias. Algumas nem tanto, como é o caso de Josey Wales, nome que faz referência a um filme de Clint Eastwood, “o fora da lei” (1976), um dos poderosos chefões do narcotráfico local, líder da emboscada, justamente quem atira — e erra — no coração de Marley.

A ambição do projeto de James não termina aí. Em uma espécie de “romance total”, o livro se debruça sobre personagens das mais variadas procedências: dos espiões da CIA infiltrados aos bandidos mais “arrombados” das gangues do país; das imigrantes negras em busca de uma vida melhor nos Estados Unidos, como a misteriosa Dorcas Palmer, a um repórter que trabalha na revista Rolling Stone, interessado a princípio na música que o país do reggae e do ska estava produzindo — mas acaba se envolvendo mais do que gostaria com a situação.

Como se não bastasse, o arco da história ainda aborda de raspão o tráfico de drogas em Medellín, a chegada do crack em Nova York, a popularização do “câncer gay”, uma série de conflitos raciais e sexuais, os primórdios do telessexo e as tensões geopolíticas que envolviam a cisão entre capitalismo e comunismo — a Jamaica era governada por um partido socialista, o PNP, e o show de Bob Marley era visto pelo primeiro-ministro, Michael Manley, como uma oportunidade para acalmar os ânimos do país às vésperas de mais uma eleição, que acabou acontecendo duas semanas depois. Mas não acalma, já que são muitas as forças interessadas na guerra, e nesse sentido o livro de James não deixa de ser mais uma ironia sobre o “processo de paz” tão alardeado pelas autoridades jamaicanas. “Não há como a paz acontecer quando há tanto a se ganhar com a guerra”, reflete Josey Wales.

Tudo isso não deixa de impressionar e gerar curiosidade. Não por acaso, o livro já foi editado em mais de vinte países — apesar de originalmente ter sido publicado por uma pequena editora do Reino Unido, a Oneworld. 

No fim, dá a impressão de que o livro poderia continuar por mais setecentas páginas, e só acaba porque metade dos seus narradores, um a um, vão ficando pelo caminho. Outros sobrevivem, mas o que viria depois já seria outra história, para outro romance, em outra Jamaica. Ou em várias outras, afinal “nada na Jamaica é uma coisa só”, conclui o jornalista Alex Pierce.

Romance multifacetado 

O aspecto multifacetado do romance é espelhado por estas várias vozes narrativas que se alternam em ritmo de aventura — recurso manjado, mas que confere ao livro uma dinâmica capaz de renovar o fôlego do leitor. Tanto as marcas da oralidade quanto os fluxos de consciência, quase sempre bem executados, dão à narrativa uma velocidade própria e alucinante de um país em chamas. “Marginal não faz anotação. Marginal escreve tudo dentro da cabeça”, diz Wales a certa altura. 

O capítulo em que Bam Bam, em estado de cólera, narra a invasão à casa de Bob Marley, quase em forma de poema, é um ponto altíssimo do livro. Mas nem todos os narradores são marginais, e o vocabulário de um agente da CIA acaba não se diferenciando tanto assim do restante.

Por vezes o leitor também será levado a questionar a verossimilhança de uma narrativa que, no entanto, se quer verossímil e realista — sobretudo pelo seu caráter neonaturalista, próprio de histórias marcadas pela violência. Não é possível, por exemplo, que um criminoso do mais alto escalão converse tanto antes de executar alguém, ou que um jornalista faça uma piada atrás da outra enquanto um matador de currículo invejável aponta uma pistola cheia de balas bem na direção da sua testa. 

Nessas horas, apenas lembre-se do conselho do próprio autor, por meio do provérbio jamaicano estampado na epígrafe do livro: “Se não foi bem assim, também não fica muito longe”.

Quem escreveu esse texto

Victor da Rosa

É crítico literário e co-organizador da antologia 99 poemas de Joan Brossa (Demônio Negro).

Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.