Literatura,
Gente autónoma
Contos de Chimamanda Adichie, agora publicados no Brasil, prenunciam os temas e o estilo que marcarão a obra da autora de “Americanah”
01set2017 | Edição #5 set.2017Terceiro livro da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, originalmente publicado em 2009, No seu pescoço (The Thing Around Your Neck) nos apresenta um conjunto de instantâneos da diáspora nigeriana. Publicados cinco anos antes do êxito avassalador de Americanah (2013), os contos anunciam os temas que viriam a marcar a obra de Adichie, em particular, as tensões entre a vida em África e a vida na América; e também prenunciam o lugar central das suas narradoras, de um modo geral jovens mulheres afastadas da Nigéria em busca de uma educação e de melhores condições de vida; ou gente jovem tentando a sua sorte num limbo entre o futuro e a circunstância.
Adichie é impiedosa na descrição da Nigéria do presente, facto realçado pelo seu estilo sem fogo de artifício. A sua prosa tem o compasso de uma história antiga e a fluência sem constrangimentos das páginas de diário de uma mulher segura de si. Lugar onde reina a arbitrariedade, a sua Lagos natal surge-nos no cruzamento entre dois pólos — a família e o Estado — no qual as suas narradoras testemunham o vexame dos seus familiares às mãos do poder. Mas Lagos é nestes contos apenas o ponto de partida de uma viagem que conduz as personagens à lotaria do Ocidente.
Sua prosa tem o compasso de uma história antiga e a fluência sem constrangimentos das páginas de diário de uma mulher segura de si
A imigração não é, contudo, nos contos de Adichie, apenas um equilibrismo entre duas instâncias arbitrárias, nem as personagens decidem sobre as suas vidas como se a sua vontade fosse um pêndulo balançado por uma mão que não a sua. Pelo contrário, Chimamanda preserva-as como o contrário de vítimas, reservando-lhes a possibilidade de escolha e de mudarem de rumo, interiormente ou através das suas acções. Em “A cela um”, diante do novelo gratuito de suborno e violência de uma esquadra de polícia, Nnamabia, irmão da narradora, insurge-se pondo em causa a própria vida, movido pelo repúdio pela humilhação de um homem velho. No conto que dá o título à colecção, “No seu pescoço”, contado na segunda pessoa, é dada à jovem narradora nigeriana, Akunna, imigrada na América do Norte, a possibilidade de fugir da casa de um tio abusador partindo para um desconhecido Connecticut e aí reconstruindo uma vida a partir do nada.
Esta reserva de poder sobre as suas acções e, em última instância, sobre o curso da sua vida estendida por Adichie às suas personagens, pessoas de outro modo apanhadas pela marcha da guerra como meras marionetas, define No seu pescoço como um tratado contra a vitimização, expressão usada tantas vezes no Ocidente como meio de abortar precocemente qualquer discussão séria sobre o desequilíbrio de poderes e oportunidades nas sociedades onde aportam pessoas como as de Adichie.
Longe de os apresentar como arquétipos, a autora descreve-os como agentes no limite e confere-lhes poder sobre o rumo das suas histórias, permitindo-lhes que fujam à injustiça, que se rebelem, se apaixonem, se recomponham nas cidades para onde partem num movimento segundo o qual poderíamos tomá-los apenas como parte de uma massa de gente sem vontade, arrastada por vicissitudes históricas e por contingências que as ultrapassam. Se se recusam a serem vítimas é também por via da voz da narradora das suas histórias, que fala por eles como se eles mesmos o fizessem, filtrando o seu ego e pondo a ficção em primeiro plano, mesmo quando reconhecemos no enredo aspectos da biografia pública de Chimamanda, como a sua pertença a uma família de funcionários públicos, figura nestes contos do ponto cego em que a lei da esfera pública esbate contra a barragem da esfera privada.
A imigração é nestes contos o palco da vontade, por excelência, na medida em que aquele ou aquela que escolhem partir são neles quem se vê na posição de tomar as rédeas da sua vida por decisão de uma narradora que faz coincidir essa dádiva com a narração desapiedada do seu destino, de que estão excluídos o sentimentalismo e o exibicionismo, contando a história como se não estivesse presente, mesmo quando a voz que nos fala é a de uma irmã próxima, de uma amiga, ou de alguém que não sabemos quem seja, mas que sabe tudo.
Sentir-se em casa
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Mais relevante do que a partida para o Ocidente é, por isso, o movimento descrito no final do conto “No seu pescoço”, que dá título ao volume. Através de uma carta enviada da Nigéria pela sua mãe, Akunna é informada de que o seu pai morreu: “Seu pai estava morto; simplesmente caiu sobre o volante do carro da empresa. Há cinco meses, escreveu ela. Eles tinham usado parte do dinheiro que ela enviara para dar a ele um bom funeral: mataram um bode para os convidados do velório e compraram um bom caixão”. A carta encontra a filha enamorada de um americano e finalmente a caminho de se sentir em casa na América. Perante a adversidade, Akunna não hesita em regressar ao seu país e à sua família, deixando para trás o seu namorado e resistindo a que ele a acompanhe.
A sua força motriz é interior, conseguida através do apagamento da sua narradora
O que poderia parecer a mão traiçoeira de uma narradora cruel, ou o elogio do cliché segundo o qual as nossas origens falam sempre mais alto, surge contudo como um modo de permitir que Akunna decida sobre o seu rumo. O momento em que ela parte ao encontro da sua mãe coincide com o ponto em que a moça reclama a sua autonomia, afirmando-se como uma personagem independente face ao que fora uma história em que se vira substituída, no seu poder de decisão, pela força das circunstâncias e da crueldade dos outros. Chimamanda não deixa que ela regresse a casa a não ser como uma mulher, movida não por nostalgia nem por sentido de responsabilidade, mas de modo a que aquilo que nos foi contado ressurja no fim, ao olhos de quem acompanhou a saga de Akunna pela América, como a saga de uma pessoa, e não como a de um fantasma, ou de um joguete do destino: “Você virou de costas e não disse nada e, quando ele a levou de carro ao aeroporto, você abraçou-o apertado por um longo, longo momento, e depois soltou”.
Chimamanda nunca diz demais quando pode dizer de menos (e a sua tradutora é fidelíssima ao ritmo e elegância da sua economia coloquial). “E depois soltou” é quanto precisamos de saber para reconhecermos Akunna como uma mulher, e não como uma vítima de forças filiais, culturais ou sociais. As personagens destes contos não se situam para lá da geopolítica, nem do conflito intercultural (esse é, aliás, quase sempre o motor da narração deste livro, com as suas viagens frustrantes, sorteio de vistos, longas despedidas, primeiros tempos em cidades estrangeiras findos os quais a ingenuidade não dá lugar, contudo, ao cinismo).
E, ainda assim, a sua força motriz é interior, conseguida através do apagamento da sua narradora numa voz que põe o sumo das suas histórias e as flutuações da sua ambivalência à frente da procura do efeito, e que se isenta de lugares-comuns sobre a Nigéria actual, ao mesmo tempo que recusa a exploração da miséria sem abdicar de mostrar que a corrupção se corporiza em, e envenena, vidas humanas, não existindo no vazio.
Nota dos editores: neste texto foi conservada a grafia vigente em Portugal
Matéria publicada na edição impressa #5 set.2017 em junho de 2018.