

Literatura,
Escrever contra a literatura
Édouard Louis retoma o olhar sobre a mãe e dá continuidade ao romance que escreve há dez anos — o da sua própria vida
08out2024 • Atualizado em: 28nov2024 | Edição #88Quando me convidaram para resenhar Monique se liberta, o novo romance de Édouard Louis, resolvi fazer uma enquete com amigos que se entusiasmaram com o escritor francês. A pergunta era “qual o seu Édouard Louis favorito?”. Nela, o nome próprio personifica a obra. “Não é estranho recorrer a um lance retórico dessa amplitude para falar de um autor de trinta e poucos anos?”, alguém poderia ter retrucado.
Fiz a pergunta sem me dar conta de que há tempos a assinatura é um traço decisivo da arte — isso quando não é o alicerce de um projeto artístico. Se existe um escritor na atualidade em que a confusão entre nome e obra deve ser tomada de modo literal, esse escritor é Louis, uma das estrelas da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, que poderia subscrever a frase de Montaigne: “sou eu mesmo a matéria do meu livro”.

As respostas foram variadas. E não surpreende no caso de um escritor que publicou muito (seis livros) num curto intervalo de tempo (nove anos), e que já com o primeiro romance, O fim de Eddy (Tusquets, 2018), tornou-se celebridade literária. O que chamou minha atenção não foi a diversidade dos títulos apontados: uns preferiam o da infância, outros o do pai, alguns o da mãe, muitos rasgaram elogios ao romance-ensaio sobre transformar-se em outra pessoa. Me impressionou que todo mundo tenha mencionado O fim de Eddy, lançado quando Louis tinha 21 anos, seja para reforçar que “ainda é o que mais gosto”, ou para produzir contraste, “os últimos são melhores”.
Fiquei me perguntando o que é ter opinião formada sobre um autor. Até outro dia só havia lido os livros de Édouard Louis sobre a mãe (Lutas e metamorfoses de uma mulher) e o pai (Quem matou meu pai), lançados pela Todavia na tradução de Marília Scalzo. São novelinhas com pouca ou nenhuma ficção, dessas que se lê numa sentada, como fiz numa viagem de avião. Me pareceram relatos honestos, raivosos, que pintam de modo cru as durezas da vida proletária e vão fundo no exame de como a pobreza brutaliza o ser humano.
Monique se liberta forma uma tríade com essas novelas em que os pais vão para o centro do relato, sem que Eddy Bellegueule (a criança oprimida) e Édouard Louis (o nome que ele adota em sua “vida nova”) saiam de cena. Mesmo quando direciona o olhar para outras vidas, Louis fala de si. E isso não é ruim. É ótimo, na verdade. Na sua escrita, o outro só ganha forma num exercício de projeção do eu, a medida de todas as coisas.
Apostas
Antes de ler o romance, achei que deveria formar uma impressão própria a respeito dos outros livros. Mais que preencher lacunas ou fazer o “dever de casa” do resenhista, quis seguir a pista do entusiasmo dos meus amigos, leitores confiáveis, para investigar o que impulsionava tamanho interesse.
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Me pareceu que o melhor caminho era abordar a escrita de Louis sem levar em conta fatores externos ao texto, por exemplo a celebração do nome. Logo me dei conta de que estava sendo ingênuo: já não existe separação entre texto e performance. Uma das habilidades de Louis é jogar com a reputação que adquiriu para dobrar a aposta no seu projeto artístico: em certo sentido, publicar é mais importante que escrever.
E escrever é regressar ao ponto de partida. Louis faz da repetição uma estratégia de narrar. É como se escrevesse o mesmo romance há dez anos. E ele escreve — o romance da sua vida. Isso explica que O fim de Eddy seja a baliza para o que publicou depois. Mas não devemos nos enganar: cada livro é mais que a continuação dos anteriores.
Na escrita do francês, o outro só ganha forma num exercício de projeção do eu, a medida de todas as coisas
O experimento envolve a busca por novas formas de abordar o velho material de sempre: a fuga sem fim (da pobreza, da família), a culpa por se sentir um trânsfuga de classe, a vergonha como forma de estar no mundo. Louis volta o tempo todo às histórias que são dele, mas também nossas. A emoções que dizem respeito a nosso modo de existir. Estranhar o ar que respiramos: é um jeito de definir o que o autor ambiciona com sua escrita.
Louis fez duas apostas que o definem (até agora) como autor. A primeira tem a ver com a resposta que deu à pergunta que não cansamos de fazer: “para onde vai a literatura?”. Em 2014, quando O fim de Eddy foi lançado, a literatura já rumava para o lugar que reconhecemos hoje: a valorização do autobiográfico, a mescla de gêneros, a ênfase na sinceridade em detrimento do artifício. Nesse terreno, Louis ergueu seu edifício de escritor.
Já a segunda aposta foi mais radical: ela distancia seu modo de “escrita do eu” do que Knausgård, Ernaux e outros faziam na época. Estou me referindo à recusa explícita da literatura. Cito uma passagem de Lutas e metamorfoses: “construíram o que chamam de literatura contra vidas e corpos como o dela”. “Escrever sobre a sua vida é escrever contra a literatura.”
O livro que melhor representa a radicalidade desse projeto inexequível — sair da literatura fazendo literatura — é Mudar: método. A automodelagem é o tema de Louis. Mas a metamorfose se converte em procedimento: viver é se transformar, escrever é virar vidas do avesso e induzir mutações genéticas no dna da tradição literária.
Monique se liberta dá continuidade ao processo. Aqui, a ideia é engrossar o caldo no exame das mudanças de vida da mãe, que Louis já havia narrado em Lutas e metamorfoses. Se na novela anterior o foco era a separação dela do pai de Eddy, que a oprimiu com todo tipo de violência, em Monique saltamos oito anos para observar a segunda metamorfose dessa mãe, que mais uma vez escapa das armadilhas de uma relação abusiva para, enfim, experimentar a liberdade de ser só, com a ajuda do filho.
Talvez falte a Monique a intensidade de Lutas e metamorfoses, ou a radicalidade de Mudar: método. É um relato que não se estrutura a partir da tensão entre o narrador e o mundo, que não se sustenta na raiva, quem sabe por ser escrito com um propósito de reparação: “este livro que você está lendo é, de algum modo, resultado de uma encomenda da minha mãe”. Ainda assim, é um novo capítulo no romance interminável de Louis. O que não pode ter fim porque se confunde com as vidas de quem o escreve.
Matéria publicada na edição impressa #88 em dezembro de 2024. Com o título “Contra a literatura”
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