Literatura,
Educação sentimental
Romance-tese da caçula da família Brontë analisa condição feminina no século 19
09nov2018 | Edição #3 jul.2017Quando, em 1848, Anne Brontë publicou seu segundo e último romance, A senhora de Wildfell Hall, os princípios de uma movimentação feminista na Inglaterra já estavam delineados e começavam a ganhar força. Até o final do século, a luta pelo sufrágio feminino, por reformas nas leis matrimoniais e por uma educação menos restritiva para as mulheres se tornaria uma esperança a ser levada a sério — ou uma ameaça, para quem fosse partidário da estagnação. Mas Anne Brontë não saberia: morreu aos 29 anos, em 1849. E passou a vida em quase total reclusão, no interior da Inglaterra. As irmãs Brontë — Charlotte, Emily e Anne — tiveram por companhia sobretudo os livros, o tédio e a inusitada força que as tornou romancistas, cada uma à sua moda.
“A literatura não pode e não deve ser assunto para mulheres”, foi a resposta que Charlotte recebeu quando enviou alguns de seus poemas a Robert Southey, poeta que, diga-se de passagem, ninguém mais lê. Foi então que Currer, Ellis e Acton Bell entraram em cena: os pseudônimos masculinos sob os quais as irmãs se esconderiam. Jane Eyre, de Charlotte (Currer) Brontë, foi o best-seller do ano de 1847 — seu sucesso foi tamanho que convenceu um editor concorrente a publicar O morro dos ventos uivantes, de Emily (Ellis) Brontë. Esses livros das duas irmãs mais velhas, que se equilibram com um pé no romance gótico e outro no romance de formação, têm a flexibilidade e a densidade ideais para serem adorados tanto por fãs de Crepúsculo quanto pela crítica marxista.
Anne Brontë, porém, que se sustenta sobretudo no território de uma literatura de ensinamento moral, é raramente lembrada, menos ainda lida. Não há tanta verve imaginativa em seus livros, é certo, mas há neles material o bastante para quem tiver interesse pela história da condição das mulheres na Europa. Anne Brontë é a irmã que vem para botar ordem na casa: aos heróis byronianos que suas irmãs chamam de sedutores, Anne chama de canalhas.
Ainda assim, o livro provocou escândalo. Charlotte, que sobreviveu às duas irmãs, o retirou de circulação, chamando-o de “mórbido”. Isso por narrar a história de Helen, que abandona o marido e leva consigo o filho. Mas antes, para que a narração tome o partido da mulher, somos levados a ver as crueldades do marido, alcoólatra e adúltero, e as virtudes da esposa — que desafia a sociedade, mas nunca o sentimento cristão.
A senhora de Wildfell Hall é um chamado à libertação íntima de cada um, que é possível apenas por meio de uma reforma moral do indivíduo — mulheres têm tanto direito a essa busca quanto homens. Anular os votos matrimoniais é uma das possíveis consequências práticas disso. Este romance-quase-tese também divulga a ideia de que o pai deve zelar pela formação dos filhos tanto quanto a mãe. O livro explora as consequências das más influências que os adultos exercem sobre as crianças e critica a educação que cria os meninos no vício e as meninas na ignorância. Nisso, alega a autora, seria didático para as mulheres que o lessem, fazendo as vezes de aviso (o termo “relacionamento abusivo” ainda não existia).
Esta ótima edição oferece também uma breve e esclarecedora introdução da tradutora, Julia Romeu, além do prefácio da autora à segunda edição do livro. O livro sai pela editora Record, que em 2011 publicou a obra-prima Middlemarch (1872) de George Eliot (nome verdadeiro, Mary Ann Evans), em tradução de Leonardo Fróes. Atualmente, está fora de catálogo, mas vale uma reedição — seria uma companhia vivificante para o universo rígido de Anne Brontë, além de uma saída bem-vinda para um cânone literário claustrofobicamente masculino.
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Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.
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