Direito, Literatura,

Diante da lei

Traição, ciúmes, raiva, brigas entre vizinhos e machismo alimentam crônicas sobre a Primeira Instância portuguesa

09nov2018 | Edição #4 ago.2017

Levante-se o réu revive uma tradição jornalística praticamente extinta — a crônica dos tribunais. Não são os grandes julgamentos, o escândalo, a encrenca de alguma celebridade ou a urgência que movem a atenção e a escrita de Rui Cardoso Martins: são conflitos do dia a dia e esquecidas tragédias de uma Lisboa com viés provinciano que se desenrolam nos recintos do Judiciário.

A crônica é, de certa maneira, o avesso do jornalismo, que, tecnicamente, hierarquiza e ordena a informação. O cronista percebe acontecimentos que muitas vezes não motivariam a divulgação de uma singela nota. E, contra as regras do lide jornalístico, o primeiro parágrafo não fornece ao leitor o cerne daquilo que será contado.

A coletânea reúne cem crônicas (escolhidas entre setecentas), publicadas originalmente no jornal Público entre 1990 e 2007. A versão da Tinta da China Brasil seleciona textos que fizeram parte de dois volumes editados em Portugal em 2015 e 2016. O prefácio é do consagrado escritor António Lobo Antunes.

Além das diferenças ortográficas (facto, húmida, óptimo), o leitor brasileiro vai se defrontar com um vocabulário de Portugal capaz de causar estranhamento: “sotôr” é corruptelação de senhor doutor, forma de tratamento das autoridades judiciais, “aldabrão” é trapaceiro, mentiroso, “fressureiras” ou “fufas” são lésbicas, “choné” é maluco, “catana” é faca, “giro” é interessante, “estalo” é tapa, “soprar o balão” é submeter-se ao bafômetro, “estar na marmelada” é fazer sexo.

Durante dezessete anos, o cronista compareceu semanalmente ao Tribunal de Polícia, que trata de crimes apanhados em flagrante e julgados sumariamente, e a outras instâncias de julgamento de Lisboa, mais demoradas, para recolher o material de seu trabalho. Acidentes de trânsito, desinteligências entre vizinhos, convivência forçada, agressões físicas, insultos, atentados ao pudor, maus-tratos de mulheres e crianças, traição, ciúmes, raiva, distúrbios, machismo, negligência grosseira são o combustível do livro.

O autor presencia depoimentos, observa versões antagônicas, os motivos ou a falta de motivos (o barulho da televisão, um simples olhar, o preconceito) e registra o desfecho. Anota diálogos e desabafos. Conversa com policiais, juízes, réus e vítimas. Troca o nome dos implicados.

O relato das audiências públicas, que poderia se confundir com obra de ficção, é normalmente pautado por um decreto do narrador ou de um dos envolvidos: “Tudo tem uma explicação. É quase sempre a mesma”, “O maior peso das coisas estúpidas é vê-las acontecer”, “O pior mal-entendido é julgar que a verdade resolve todos os problemas”, “Toda gente faz, uma vez, alguma coisa que nunca mais acaba”, “A amizade pode morrer num instante”, “Uma coisa é o que realmente acontece, outra o que os outros dizem ter visto acontecer”, “Mas é com enganos que começam muitas histórias, boas e más”.

Assim como em Nelson Rodrigues, é a vida como ela é. Em Lisboa. O sofrimento é anônimo

O desapego a datas — prevalece o sentimento de que os fatos narrados poderiam acontecer amanhã — reforça a força literária da coletânea. Não importa se as crônicas foram escritas neste ou no século passado. As referências temporais surgem em notas de rodapé e se limitam à conversão dos valores das multas e dos prejuízos (de escudos, “contos” ou euros para o real) ou servem para transmitir a demora da causa ou uma informação histórica (na época, a violência doméstica ainda não era “crime público”, a vítima podia “retirar a queixa”).

As crônicas de Rui Cardoso Martins tangenciam o humor e o trágico, o inusitado e a melancolia.

Se em “O homem que aproveitava a hora do almoço” o autor trata do hábito de um serial masturbator surpreendido por universitárias e policiais, em “A mulher que estava bem com a vida” conta a reação pacífica de uma vítima de atropelamento: desistiria do processo contra o motorista imprudente, que, além de fugir da cena do crime, deixou-a com as duas pernas quebradas, quase um ano inteiro de cirurgias, fisioterapia e recuperação, pois, afinal, é “um acidente que pode acontecer a qualquer um”.

Assim como em Nelson Rodrigues, é a vida como ela é. Em Lisboa. São casos triviais. As agressões e a dor são anônimas. A ameaça é circunscrita, assim como os sinais da pobreza. O sofrimento é privado, alcança só o punhado de gente que rodeia os personagens. As pessoas entram e saem dos tribunais atolados de processos, os juízes empenhados em encerrar os desentendimentos, quase ninguém é preso, e tudo se repete sob o olhar atento e resignado de um talentoso escritor.

Os episódios de violência doméstica, tragédia universal, são o que mais impressiona e comove em Levante-se o réu. É o retrato de um país ainda distante da Europa. 

Quem escreveu esse texto

Luís Francisco Carvalho Filho

Advogado, é autor de Nada mais foi dito nem perguntado (Editora 34).

Matéria publicada na edição impressa #4 ago.2017 em junho de 2018.