Direito,

Romanos no tribunal

Do banimento do poeta Ovídio ao julgamento de Jesus, professor analisa processos da Roma Antiga

20nov2018 | Edição #11 mai.2018

O livro Perante os juízes romanos: processos célebres da Roma Antiga é resultado do curso do professor Detlef Liebs na graduação em direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Albert-Ludwig de Friburgo, na Alemanha.

O sistema jurídico romano-germânico é o que mais se difundiu. Notabiliza-se, sobretudo, pela influência decisiva na vida civil e privada na Europa continental, América Latina e em territórios da Ásia e da África, onde os códigos, suas principais heranças, são duradouros.

Por isso, a coleção de casos traduzida pelo juiz federal em Brasília Márcio Flavio Mafra Leal, ele próprio aluno de Liebs, surpreende por reunir uma maioria de processos criminais.

Ensacamento com animais vivos, crucificação, morte pelo fogo: a pena capital é o desfecho das grandes transgressões. Fatos e crenças, ficção poética e jurisprudência, tudo se entrelaça em enredos curiosos e marcantes.

Liebs fala da credibilidade das fontes, do contexto histórico dos acontecimentos, da marcha dos processos e da relevância de cada precedente, mas a narrativa às vezes confunde. O leitor sentirá falta de uma linha do tempo (que vai de 670 a.C. a 386 d.C., com diferentes formas de governo) e de um glossário esclarecedor.

Processos

No capítulo “O assassinato da irmã enlutada pelo inimigo abatido” surgem sinais de intolerância à mulher pela interferência dos “arroubos sentimentais” nas “ações bélicas dos homens”. Em outro, além da “má conduta sexual”, a Arte de amar, obra que que justifica o banimento de Ovídio, “poeta de palavras poderosas”, decretado pelo imperador Augusto, instiga o adultério. 

Particularmente interessantes são os casos relativos ao nascimento do cristianismo. Se a condenação de Jesus é apresentada como exemplo “negativo” de sentença injusta, são dramáticos os processos decorrentes da intolerância e da perseguição religiosa.

“Eles odeiam o gênero humano” é sobre a acusação de Nero contra cristãos pelo incêndio de Roma, três décadas depois da crucificação de Jesus. A fonte é o senador romano e historiador Tácito: “Nero jogou a culpa a outros e os fez sofrer com penas elaboradas, que por causa de seus atos abomináveis eram odiados e como povo eram chamados de Chrestianos. O nome decorre daquele Christus, que sob o império de Tibério foi executado pelo governador Pôncio Pilatos”.

Tempos de “histeria de massa”, a série de processos pelo incêndio de Roma definiria a “confissão ao cristianismo” como crime autônomo. Tácito (para quem os cristãos eram adeptos de “superstição sinistra” e praticantes de “atrocidades terríveis”) não censura os excessos de Nero por sentir compaixão pelo sofrimento extremo das vítimas, mas pela compaixão despertada em “alguns círculos sociais”.

Outra vertente de tratamento jurídico aparece no capítulo das sentenças de Plínio, o jovem, interventor oficial em província romana localizada na costa sul do mar Negro.

Plínio vê, em 110 d.C., que o cristianismo já se espalhava em todas as camadas da população. Interroga os cristãos pessoalmente e, se reconheciam-se como tal, ele os “inquiria, sob pena de morte, uma segunda e terceira vez”, para saber se preservariam ou não a fé, ordenando a execução imediata dos renitentes.

Sua correspondência com o imperador Trajano (98-117) contém consultas e respostas de como proceder e faz emergir sinais de importante mudança política. Em matéria de cristãos, juízes têm ampla discricionariedade, inclusive para aplicar penas mais brandas a jovens e pessoas vulneráveis. Denúncias anônimas são recusadas. É legítima a política de perdão de Plínio diante do arrependimento e da renúncia à fé. Liebs lembra: cristãos incorporam a praxe a seus rituais ao punir infiéis e heréticos.

O último dos precedentes relatados no livro trata justamente da primeira condenação de cristãos à morte por heresia e práticas contrárias à igreja e ao cristianismo: Prisciliano, pregador na Espanha, assim como alguns de seus seguidores, seria executado, pela espada, por doutrinas obscenas, espécie de pré-história da Inquisição.

A publicação foi feita em parceria com o IDP, instituto presidido pelo ministro Gilmar Mendes, do STF. Como mostram os alemães, o direito romano, quase banido das faculdades brasileiras (há exceções em universidades públicas), ainda ajuda a explicar o que acontece nos tribunais.

Quem escreveu esse texto

Luís Francisco Carvalho Filho

Advogado, é autor de Nada mais foi dito nem perguntado (Editora 34).

Matéria publicada na edição impressa #11 mai.2018 em junho de 2018.