Literatura,

Deslocamentos sensórios

Novo livro de Muriel Barbery é um convite para um passeio pelo Japão e pelas esquinas da alma

01abr2022 | Edição #56

Uma história que percorre muitos caminhos. Essa talvez seja a definição mais abrangente de Uma rosa só, de Muriel Barbery, escritora francesa, professora de filosofia e autora do best-seller A elegância do ouriço (2006). A começar pela geografia: Quioto é onde se passa a jornada de Rose, uma botânica parisiense de quarenta anos que foi convocada para a leitura do testamento de Haru — o pai japonês que nunca conheceu e por quem se sentiu abandonada durante toda a vida.


Uma rosa só, de Muriel Barbery, é um convite para um passeio pelo Japão e pelas esquinas da alma

O cenário é inesperadamente alternativo àquele apresentado pelos livros de Haruki Murakami, um dos romancistas japoneses mais lidos da atualidade, por exemplo. Em detrimento da vivência de pessoas locais, Barbery nos empresta olhares estrangeiros carregados de uma sofisticação turística. Quem guia o leitor é Paul, o misterioso art dealer belga e pupilo de Haru que, aconselhado por seu mentor, acompanha Rose em incessantes visitas pelos templos budistas da cidade. As descrições são minuciosas: da arquitetura monumental às cores e detalhes que poderiam passar despercebidos a olho nu, é quase possível se projetar ao lado dos personagens nas andanças. As nuances gastronômicas que surgem entre um capítulo e outro seguem a mesma linha: dos peixes exóticos comidos crus ou fritos, passando pelos matchas, chás de ameixa, saquês e cervejas, a autora cria uma deliciosa experiência sinestésica.

A autora nos empresta olhares estrangeiros de Kyoto carregados de uma sofisticação turística

Não é a primeira vez que a cultura japonesa aparece em uma obra de Barbery. Em A elegância do ouriço — traduzido para mais de quarenta idiomas e adaptado para o cinema por Mona Achache em 2009 —, é a partir da chegada do japonês Ozu ao pomposo edifício onde se passa a trama que as narradoras Renée e Paloma passam a interagir e a criar uma conexão profunda e complexa. Não é por acaso, já que a autora mora em Quioto há mais de uma década, ainda que seu encantamento pelo país ocorra há muito mais tempo. Em uma entrevista à editora independente Europa Editions, ela conta sobre esse fascínio: “Começou principalmente com a estética, e assim permaneceu: sou fascinada pela capacidade de criar beleza pura e, ao mesmo tempo, refinada; o tipo de coisa que você vê na lenta e doce suntuosidade dos filmes de Yasujiro Ozu, no esplendor dos jardins, na sofisticação discreta da ikebana”.

Complexidade humana

Para além dos caminhos turísticos, arquitetônicos e gustativos, Uma rosa só percorre as vias e esquinas da alma. Como sempre, Barbery explora as complexidades da existência e das relações humanas por meio de diálogos cheios de frases de efeito e sempre com embasamento filosófico — seus livros são contemplativos e demandam tempo para o leitor parar e refletir sobre passagens simples, mas que têm certo poder de iluminação.

Desta vez, porém, a autora parece ter escolhido temas específicos: a morte, o luto, a tristeza que se torna apatia e, é claro, o amor. A quantas mortes é possível sobreviver em vida? À de uma mãe, de uma avó, de um pai, de um filho? Dá para continuar sendo a mesma pessoa depois de carregar dentro de si tantas partidas? Ou é preciso morrer de alguma forma antes de começar a viver verdadeiramente? Esses são alguns dos questionamentos levantados no romance. Mas, apesar da densidade dos assuntos, o resultado é leve e, em muitos momentos, quase superficial, já que Barbery parece não querer se aprofundar demais em nenhum deles.

Rose foi concebida durante um rápido affair entre sua mãe, a francesa Maud, e seu pai, o japonês Haru. Maud, uma mulher deprimida, fechada e que cometeu suicídio alguns anos antes, não costumava mencionar Haru. Sua vida breve e triste acaba tornando a protagonista profundamente solitária e alienada — uma estrutura de personagem, aliás, que lembra a de Paloma, a adolescente prodígio e rebelde de A elegância do ouriço.

Ao embarcar para Quioto na saga do testamento, Rose descobre quem foi seu pai: um renomado coleciona dor de arte, que morava em uma casa elegante, era assistido por motorista e empregada e colecionava flores e musgos — de onde Rose entende ter vindo sua paixão pela botânica. Ela também descobre que Haru guardava fotos suas em todas as idades. Ao habitar esses espaços desconhecidos, mas tão familiares, Rose experimenta uma conexão ambivalente com seus antepassados e passa a sentir “algo vivo, um fantasma silencioso e atento”. Somado a isso, o encontro com Paul aos poucos caminha para um novo tipo de conexão nunca antes vivido por Rose. A partir daí, os eventos da narrativa se desenrolam com constante inevitabilidade — o testamento de Haru parece mais ser uma predestinação para grandes mudanças na vida de Rose.

A quantas mortes é possível sobreviver em vida? Dá para continuar sendo o mesmo depois de tantas partidas?

A revelação gradual de um novo começo para a jornada da protagonista pode soar um pouco previsível. No entanto, o conteúdo cultural da história e o desenvolvimento dos personagens se encaixam tão bem que atenuam essa tensão narrativa — possivelmente um efeito proposital. Além disso, Barbery insere pequenas fábulas japonesas entre um capítulo e outro, que garantem fôlego necessário para seguir em frente e adiantam acontecimentos. Para os leitores que admiram o tom e o ritmo lento de autores como Yasunari Kawabata, a profundidade de poetas como Kobayashi Issa (bastante citado no romance), as nuances únicas da culinária japonesa, a simplicidade profunda e complexa dos templos, dos jardins e da cordialidade, Uma rosa só pode servir como um diário de bordo, a janela de um trem em movimento. Para os demais, é uma leitura que se aproxima de um conto de fadas moderno, A bela adormecida contemporânea sendo salva do próprio sono. Pode parecer leviano? Talvez. Mas, em tempos de conflitos sanitários, políticos e bélicos, é preciso saber aproveitar também as gavetas de alienação e fantasia quando nos são oferecidas.

Quem escreveu esse texto

Olivia Nicoletti

É autora dos contos de Endereço (Patuá).

Matéria publicada na edição impressa #56 em fevereiro de 2022.