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Como nascem as estrelas
Autora argentina cria mitologia fantástica em torno das lendas do rock
01jul2019 | Edição #24 jul.2019“A fantasia não deixa de ser algo ambíguo: situada em meio ao falso, à tolice, ao ilusório, aos baixios da mente e à crucial conexão da mente com o real”, observou Ursula K. Le Guin, em 1988, na introdução da edição norte-americana da Antologia da literatura fantástica, quatro décadas depois do lançamento em Buenos Aires da coletânea organizada por Adolfo Bioy Casares, Jorge Luis Borges e Silvina Ocampo. A afirmação de uma das grandes escritoras de ficção científica do século 20 resume o principal desafio enfrentado por Mariana Enriquez em Este é o mar: convencer o leitor a embarcar em uma viagem, tão improvável quanto arriscada, a um mundo de mulheres imortais encarregadas de transformar roqueiros em lendas. Mas a autora argentina, como havia demonstrado em seu único livro editado no Brasil (a assombrosa coletânea de contos As coisas que perdemos no fogo), sabe o que faz, pois conduz a narrativa mitológica sem floreios e com rigor.
Sendo o título homônimo do álbum de uma banda de rock britânica dos anos 1980, Este é o mar indica aonde Mariana Enriquez pretende chegar. Lançado em 1985, This is the sea é considerado um dos pontos altos da discografia de um grupo cultuado pela escritora, The Waterboys, alcunha do cantor e compositor escocês Mike Scott. No auge da concisão do pós-punk, Scott apareceu com uma coleção de canções longas e hipnóticas, mais próximas do repertório do irlandês Van Morrison e de outros nomes surgidos em décadas anteriores. A faixa mais conhecida do álbum, “The Whole of the Moon”, foi utilizada recentemente pelo U2 como trilha de abertura da turnê comemorativa dos trinta anos do álbum The Joshua Tree. Sem o predomínio de guitarras, instrumentos como violino, saxofone e teclado emolduram versos épicos e metafóricos sobre visões de arco-íris, estrelas, rios e mares, seres alados, deuses gregos — há inclusive uma faixa, “The Pan within” (“O Pã interior”), que convida para uma “viagem sob a pele” (coincidência ou não, jornada semelhante rende uma bela passagem do livro).
A junção do universo do rock com criaturas sobrenaturais que não sofrem o efeito da passagem do tempo não pode ser considerada 100% original. Basta lembrar que Anne Rice explorou o tema ainda nos anos 1970 em um dos volumes das Crônicas vampirescas de seu Lestat, e o cineasta Joel Schumacher utilizou expediente parecido no filme de terror juvenil Os garotos perdidos (1987).
Do efêmero ao eterno
Mariana Enriquez, contudo, desvia da superficialidade pop ao mergulhar na fabulação por meio da visão (inicialmente) desapaixonada, irônica, por vezes cruel de sua narradora, Helena, em especial na observação do comportamento das fãs de James Evans, vocalista da banda fictícia Fallen. Ao especular sobre a forma mais eficaz de cumprir a missão de garantir a Evans “a eternidade de um deus”, Helena decide pelo agravamento de crises de asma, uma doença “sexy”. Considera que induzir o cantor à morte por overdose seria “bastante tedioso”. “Pouco a pouco, todos os dias, fazia James perder um pouco mais o fôlego. As garotas adoravam. Era espantoso o quanto queriam vê-lo doente ou morto […]”, observa, não sem ironia, a responsável pela conversão do vocalista em uma Estrela do Rock. E o uso de letras maiúsculas — Os Isolamentos, Os Confinamentos, Os Mistérios dos Últimos Dias — é um recurso simples e eficiente utilizado pela autora para criar e delimitar seu mundo ilusório.
A jornada de Helena é acompanhada por outros seres que assumiram formas humanas femininas para eternizar ídolos do rock como Jim Morrison, Sid Vicious e David Bowie. A inclusão de nomes reais encorpa a narrativa fluente, de frases e parágrafos curtos. Os fatores que levaram ao suicídio de Kurt Cobain em 1994, por exemplo, foram alvo de digressões na literatura (A maçã envenenada, de Michel Laub) e no cinema (Last Days, de Gus Van Sant). Em Este é o mar, contudo, Cobain alcança o trampolim para a morte por meio de Violeta, a “mais decidida e séria” das criaturas conhecidas como Luminosas: “Fui enviada para seguir Kurt quando ele ainda era muito jovem”, lembra Violeta. “Decidi que o estômago ia doer […]. Sofria tanto que usava heroína e outras drogas para aplacar a dor […] Eu podia ter deixado que ele morresse de overdose. Mas não era suficiente. Helena, nós precisamos de uma Estrela, não de um cadáver”, ensina a criadora da Lenda de Kurt Cobain.
O local das apresentações da banda fictícia Fallen é retratado em atmosfera impregnada de suor, sonhos e sexo; ‘smells like teen spirit’
Na mitologia criada por Mariana Enriquez, a transformação do efêmero em eterno pode ocorrer por meio do sacrifício de fãs. “Nós nos alimentamos deles, de suas devoções. […] E temos que alimentar esse fogo com corpos, de vez em quando, para mantê-los vivos e nos mantermos vivas”, explica uma das Luminosas. A descrição da “vibração emotiva” de adolescentes depois dos shows, à espera de um rápido encontro com o ídolo no backstage, rende um dos grandes momentos do romance. “Havia noites em que o ar lembrava o fim de um massacre. Era a fumaça das grelhas para hambúrgueres nas barracas de comida e dos fogos de artifício, e também a persistência dos gritos: quando as adolescentes gritam tanto e durante tanto tempo, o som permanece mesmo depois de elas voltarem para suas casas e seus quartos, o ar vibra em uma nota aguda, um eco de feridas e fogueiras.” Pelos olhos de Helena, a autora retrata o local das apresentações do Fallen como um “campo de batalha recém-abandonado”, um desaguadouro das vastas emoções de corpos imperfeitos, em atmosfera impregnada de suor, sonhos e sexo. “Smells like teen spirit”.
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Este é o mar pode, então, ser considerado um romance juvenil? Sim. Despertará maior interesse de aficionados de rock? Provavelmente. Mas também pode ser lido como uma metafórica despedida da juventude. Ou a arguta visão feminina a respeito de um dos territórios sagrados da imaturidade masculina. Eis a repetição da principal virtude de As coisas que perdemos no fogo: a possibilidade de múltiplas leituras. Mariana Enriquez confirma que, a exemplo das boas canções, boas histórias alcançam diferentes gerações porque desafiam o tempo. Estão condenadas à eternidade. Como ensinou Bioy Casares quase um século atrás, na apresentação de sua fantástica antologia: “Antigas como o medo, as ficções fantásticas são anteriores às letras”.
Matéria publicada na edição impressa #24 jul.2019 em junho de 2019.
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