Literatura,

Com sabor de primeiro livro

Em romance irregular, porém espirituoso, Safran Foer se arrisca na autoficção para discutir judaísmo, família, casamento e identidades

12nov2018 | Edição #5 set.2017

Cultuado e famoso aos quarenta, Jonathan Safran Foer chega finalmente ao primeiro livro. Bem, essa é sua opinião. E é compreensível. Comparado aos anteriores, Aqui estou não se parece com o quarto bagunçado de um menino prodígio. É menos pirotécnico que Tudo se ilumina (2002) e Extremamente alto & incrivelmente perto (2005), livros nos quais o autor, bastante jovem à época, experimentou formatos, inseriu fotos, imagens gráficas, explorou diversos registros narrativos e, de acordo com alguns críticos, abusou de piadas infames.

Esses elementos ainda estão presentes na sua prosa idiossincrática e inventiva, mas aparecem diluídos ou mais bem distribuídos. Há mais vozes de peso em Aqui estou, romance ambicioso de quase seiscentas páginas. Se antes ele se arriscava em lances de efeito, agora o risco se encontra mais embaixo, em passes de profundidade. Onze anos se passaram. É demais para um autor midiático, em torno do qual orbitam muitas expectativas. Não apenas seus dois primeiros romances fizeram bastante sucesso de crítica e público, como geraram filmes razoáveis; o primeiro dirigido pelo ator Liev Schreiber, e o segundo com Tom Hanks.

Nesse meio-tempo, o escritor teve dois filhos com a também romancista Nicole Krauss, de quem divorciou-se depois de um longo relacionamento, editou uma nova versão da Haggadah (2014), narrativa do êxodo judaico do Egito, com tradução de Nathan Englander, outro autor judeu americano de talento, e publicou o curioso Tree of Codes (2010), um belo livro-objeto da Visual Editions, em que produz uma nova obra a partir de recortes da novela Rua dos crocodilos, de Bruno Schulz; publicou também Comer animais (2009), uma espécie de longo manifesto vegetariano. 

Antes mesmo de Tudo se ilumina, fenômeno editorial que se originou numa tese orientada por Joyce Carol Oates, em Princeton, ainda havia editado um livro em homenagem ao artista Joseph Cornell, autor de colagens que de algum jeito parecem ter influenciado mais seus escritos que Philip Roth ou Saul Bellow.

Como se pode ver, é um espírito inquieto, com interesses diversos, o que se depreende também nos assuntos discutidos em seus textos, que vão dos rituais hebreus à astronomia.

Gestação lenta

Aqui estou teve gestação lenta porque parte de sua experiência ao longo desses anos. Pensado de início como série para a HBO, o romance se concentra em algumas semanas na vida da família Bloch, mas faz desvios para o passado e o futuro. O narrador, em muito parecido com o autor, é Jacob, casado com Julia, e pai de Sam, Max e Benjy. Como em todas as suas histórias, a busca por uma identidade é a chave, especialmente em meio a uma crise. E todos os personagens estão em crise. O casamento leva um golpe quando Julia acha um celular secreto dele, com mensagens pornográficas e escatológicas para outra mulher. Sam está prestes a fazer um bar mitzvá no qual não vê nenhum sentido.

As coisas se complicam quando Tamir, o primo israelense bem-sucedido, vem visitar a família com seu filho Barak. Ele acusa Jacob de não contribuir com a nação judaica. E ainda o faz se sentir inferior, mesmo que suas bravatas soem ridículas. Jacob é um escritor premiado com o National Jewish Book Award, assim como Safran Foer. Também, como o autor, escreve uma série sobre a família, mora em Washington (hoje Foer ensina escrita criativa na New York University) e tem um avô, Isaac, sobrevivente do Holocausto (no caso de Foer, uma avó) prestes a se mudar para um asilo. Ele contempla planos suicidas. No clima disfuncional de humor autoderrisório que domina as conversas, os parentes se desentendem entendendo-se, ou vice-versa. 

No clima disfuncional de humor autoderrisório das conversas, os parentes se desentendem entendendo-se, ou vice-versa

E aqui os diálogos são particularmente espirituosos e engraçados. Irv, o pai de Jacob, é um judeu reacionário e, a seu modo torto, simpático. Expressa, sem vergonha, ideias racistas que poderiam estar na boca de alguém à direita de Netanyahu, o primeiro-ministro de Israel, para horror dos politicamente corretos Jacob, Julia e filhos (Sam tem como avatar uma menina latina em The Other Life, jogo tipo The Sims, e é apaixonado por uma colega negra, Billie).

O livro dá um guinada na segunda metade, quando a ameaça anunciada logo na primeira frase, “Quando a destruição de Israel teve início”, se concretiza em parte. Um terremoto de grandes proporções atinge o Oriente Médio e se inicia uma guerra. As questões que se colocavam então numa escala íntima, como casamento, paternidade, vida virtual, velhice, suicídio, traição, judaísmo, tolerância, ganham agora uma dimensão geopolítica. Naquele que é talvez o grande capítulo do romance e possivelmente a melhor coisa que Safran Foer escreveu, Tamir e Jacob se recolhem para um diálogo regado a cerveja e maconha que dura toda uma noite e faz lembrar, guardadas as proporções, as grandes conversas dostoievskianas.

Discutem o que é, afinal, ser judeu e o que é ser um homem maduro, de caráter; o que representa Israel para um judeu americano, confortável em sua distância do conflito; qual a responsabilidade de um judeu em relação a Israel e de Israel em relação aos palestinos e aos países árabes vizinhos. Num jogo de espelhos, como em toda conversa real, não muito racional, e que vai se adensando com a fumaça da cannabis, eles misturam macro e micro, aproximando a situação bélica do litígio no casamento, as rusgas com os filhos das preocupações com a guerra.

Outro grande capítulo deste livro irregular, mas no cômputo geral bastante interessante, descreve o sermão de um jovem rabino no enterro de Isaac (há quem possa sentir falta, por exemplo, do contraponto de um personagem árabe ou muçulmano). É o ponto mais comovente da história e remete ao Antigo Testamento e à história de Moisés, quando encontrado no rio pela filha do faraó. O título do romance também se refere ao livro sagrado. Na história de Abraão, Deus o chama e, para testar sua fé, pede que sacrifique seu filho, Isaac.

Com seus altos e baixos, e uma disposição saudável para o risco, Jonathan Safran Foer mostrou ao Deus leitor que está pronto para o sacrifício. Aqui estou. Hineni.

Quem escreveu esse texto

Daniel de Mesquita Benevides

É jornalista e tradutor.

Matéria publicada na edição impressa #5 set.2017 em junho de 2018.