Literatura,
Coisas fantásticas facilmente esquecidas
Após ‘Minha luta’, Karl Ove Knausgård faz um inventário de elementos cotidianos para a filha que ainda virá
26ago2022 | Edição #61Desde que li Outono, lembro-me de Karl Ove Knausgård sempre que como uma maçã. Durante a infância, o escritor decidiu que engoliria, além da polpa, também as sementes e o caule, pelo que ele entende até hoje ser o esforço necessário para recompensar o prazer agridoce da fruta. É de coisas assim que trata o primeiro dos quatro livros de sua série das estações do ano: de gestos e paisagens cotidianos, de sentimentos corriqueiros, de aproximá-los o suficiente, com a linguagem, para que se distingam na névoa uniforme dos dias.
Como faz diversas vezes em Minha luta, hexalogia autobiográfica que o consagrou, Knausgård começa o livro demarcando a escrita com uma data, 28 de agosto, fim de verão na Escandinávia, instaurando um agora que em vão a escrita tenta fixar. Trata-se da abertura de uma carta muito específica: a que escreve para a filha não nascida, estipulando outro tipo de pacto que não o romanesco, como se convidasse quem lê a situar-se, mais que diante de palavras, de uma intimidade, uma relação mais ficcional, talvez, que qualquer outra, pois estabelecida com alguém que ainda não existe. “Eu quero mostrar a você o mundo da maneira como é”, “essas coisas fantásticas facilmente esquecidas”, diz ele com uma intenção que aproxima Outono do projeto de Minha luta, no qual, com minúcias descritivas da própria vida, pretende combater com ficção a ficção que se tornou a vida pós-moderna.
O artifício da escrita para a filha, no entanto, não dura muito. A costumeira honestidade logo faz o autor se corrigir: “É acima de tudo para mim que eu faço isso: mostrar o mundo a você faz com que valha a pena viver minha vida”. Um “mostrar” que é, na verdade, escrever, um “você” que é, na verdade, não a filha, mas o próprio leitor.
Onde já estamos
No ensaio “A linguagem”, Martin Heidegger declara: “Não queremos, porém, ir a lugar nenhum. Queremos ao menos uma vez chegar ao lugar em que já estamos”. A colocação poderia caber também a Outono, em que, aliás, consta Heidegger, ainda que como antirreferência: no capítulo “Experiência”, Knausgård confessa não entender o pensamento do alemão. É mais um de seus engenhos já conhecidos, o de escancarar as próprias limitações e inseguranças mesmo que a escrita o contradiga — já que depois ele conclui, com perfeita compreensão heideggeriana: “O eu não é nada em si mesmo”.
Chegar aonde já se está é, aqui, empreender uma verdadeira fenomenologia das coisas que constituem uma vida; salvá-las, de certa forma, de seu apagamento pelo automatismo da mera presença no mundo. É como se o autor se apoderasse de uma lupa ainda mais potente para debruçar no próprio cotidiano: a vespa de corpo bipartido, o “minúsculo dente, perfeitamente branco com a raiz vermelho-escura de sangue”, que se delineia “com uma clareza quase obscena sobre a pele vermelho-pálida da mão”, o sol, Van Gogh, galochas e águas-vivas, tudo o que existe é passível de aflorar na escrita, assim como o deter-se sobre os aspectos animal, natural e de certa forma não humano das pessoas, algo que já aparecia em seus ensaios.
O resultado é um conjunto coeso em sua heterogeneidade, textos com teor de diário cujas entradas seriam não os dias, mas as coisas — algumas belíssimas, memoráveis, outras singelas, outras ainda engraçadas, como quando Knausgård narra seu vício em chicletes e o episódio em que se viu constrangido na casa de um editor por não ter onde jogar a maçaroca de goma de mascar que já não cabia em sua boca: “Qualquer outra falta teria sido recebida com tolerância, porque eu estava lá na condição de escritor, portanto artista, portanto uma pessoa capaz de cortar fora a própria orelha”, enquanto “mascar chicletes só parecia contestador aos sete, oito anos”.
É um conjunto coeso de textos com teor de diário cujas entradas seriam não os dias, mas as coisas
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Algumas entradas denunciam que o projeto de abarcar o todo do mundo é uma pretensão impossível de cumprir, pois sempre se escreve a partir de um lugar, um ponto de vista, nesse caso, o de um norueguês vivendo na Suécia. É a partir desse lugar que ele diz, por exemplo, que as igrejas estão vazias, que não seriam mais necessárias, o que denuncia uma visão por vezes local, equivocadamente universalizadora.
O leitor saudoso de Minha luta encontrará outros pontos de contato com Outono, para além do escrever obsessivo que não cabe em um só volume e do olhar minucioso para o mundo e sem condescendência para si. Aqui, também há passagens em que a escrita se coloca como o dispositivo revelador do que até então precisava ser segredo, o lugar onde não se deve nem se pode esconder nada, pois isso equivaleria, mais que simplesmente mentir ou enganar, a rebaixá-la, destacando-a do núcleo impetuoso e urgente que a impele: a voracidade knausgardiana pelo acesso à realidade, responsável, fosse isso possível, não por um efeito de verdade, mas pela verdade mesma; a sagrada e brutal honestidade de Karl Ove Knausgård. Assim, em Outono, ter mijado dentro do saco de dormir entre amigos que nunca saberiam do episódio se não tivesse sido lançado aos quatro ventos em uma publicação equivaleria em Minha luta a tornar público, dentre tantos outros, o vexame de ter sido o único a votar em si mesmo nas eleições da sala.
As peças soltas de Outono, no entanto, não se encaixam na obra maior que Minha luta é. Episódios que evocam o pai e a mãe de Knausgård, as crianças e Linda não parecem complementar com exatidão os elementos autobiográficos já conhecidos, e nem se lê o primeiro volume da série das estações com a mesma avidez, provavelmente porque aqui temos a mesma pessoa, o mesmo autor, mas não temos um personagem. Se a chamada autoficção depende de uma postura performática de quem a escreve, uma postura que ultrapassaria a obra e contaria com um rosto, uma voz, uma presença no mundo real — e no virtual —, ela também não existe sem algo que só se dá no romance, dentro da própria obra: uma aura, uma chama, como diz Walter Benjamin, capaz de consumir o destino que, mesmo escrito em primeira pessoa, é sempre alheio, só pode ser alheio, e só assim pode abrir o espaço narrativo que, com voracidade, o leitor vai ocupar.
Matéria publicada na edição impressa #61 em julho de 2022.
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