
Literatura,
Caldo primordial
Em textos breves e cheios de vida, antropólogo e poeta paulista publica seu primeiro trabalho em prosa
28fev2019 | Edição #20 Mar.2019Este é um livro dividido em três partes, cada uma ocupa cerca de cinquenta páginas, cada uma cria uma estratégia diferente para evitar contar uma história. O que lemos são quase-narrativas — nascem e morrem rápido demais para virarem uma história. Ou melhor, nascem, morrem e se transformam; o livro é todo fértil, as coisas que aparecem nele estão sempre prestes a brotar.
“Mar de viração”, expressão pouco usual do título, é a boa sorte que vem quando a maré vira. Mais do que um mar, porém, entramos com esses textos num caldo primordial. A diferença entre o que é vivo e o que não é não faz, no fim das contas, muita diferença. “Perdão, senhor. Chove muito, lá fora, o navio vai balançando e gritaram para que todo mundo se protegesse. Espero não ter incomodado, senhor. Espero não estar incomodando. Eu… posso ficar aqui, enquanto chovo?”; “O suco de laranja pela metade ouvia o fim da história”. A vida que há nessa prosa faz nascer rimas onde não seriam esperadas: “Com a mão e o braço inteiros pelo corpo da amada, pela viagem ao nada e à volta. Pelo batucar das ondas na areia, pelo despertar que importa. Pelo suspiro da vida à solta” (grifos meus).
Os trechos citados são parte da primeira história — e mais poderia ser dito sobre quem é a “amada”, quem é o “senhor” a quem se pede perdão, ou o que um copo de suco tem a ver com tudo isso. Mas não parece necessário. Esse livro, diferente de muito da produção atual, não se interessa pela criação de personagens verossímeis nem com o desenrolar de seus dramas.
Questões de ritmo
As três partes, que podem ser lidas em qualquer ordem, são a invenção de uma ambiência, e os personagens, quando surgem, o fazem porque o ritmo parece convocá-los, e não o enredo. O efeito geral disso, e o efeito geral de Mar de viração, é parecido com um delírio de febre. Sem o mal-estar no corpo. O problema — que só existe para uma resenhista — é que o livro se torna arredio na hora de ser citado, e os trechos recortados parecem um movimento interrompido.
No que dá para resumir, diria que a primeira parte, “O naufrágio do Aqueronte”, é a história de uma viagem de navio, rumo a uma terra gelada. A bordo, há uma menina que lê um livro de milagres, um homem velho que se recupera de uma doença enquanto ouve música clássica, um que se diz (ou é) o Salvador do mundo e mais um punhado de personagens e figurantes que conversam e tomam drinques no bar do navio, enquanto “o espírito de Deus [paira] sobre a face das águas”.
A segunda parte, “Terra húmyda”, parece uma combinação de fábulas ou histórias cosmogônicas, um pouco literatura infantil, um pouco prosa regionalista. Aqui a narrativa — com príncipe, bardo, gigante, criança e tolo da aldeia — se torna mais difusa. Olhamos para os acontecimentos a partir de um lugar muito distante, e o foco não parece claro. Não sei dizer se olhei para os lugares onde deveria enquanto lia essa parte; talvez o mais importante tenha passado batido. É possível, porém, que o mais importante seja esse levantar de poeira no ar: palavras e sons e imagens que passam e só passam.
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A terceira parte, “Santos’agrados”, é uma série de falas entrecortadas: falam um peixeiro do século 19, um vendedor de mate na praia dos dias de hoje, um Jorge que é às vezes São Jorge, às vezes um Jorge qualquer: “Daqui da lua, agora e sempre, dá pra ver as estrelas se erguendo ao longe e perto, o tempo todo, o dia inteiro, lado direito ou esquerdo, face aclarada ou escura. Não há dragão, nem nada, a lua toda esburacada de crateras só tem bandeira e uma ou outra sonda, parafuso de sonda, pedaço de sucata espacial. E eu, e os sonhos de um monte de gente lá embaixo, de um monte de bicho, as letras dos músicos os romances os poemas as declarações e as tiranias desembestadas no peito de quem grita. E todo mundo grita, olhando pra lua todo mundo, nas noites de lua cheia e nas outras quase, daqui da lua as estrelas rebatem os sonhos de todos vocês. Sem alarde”.
Durazzo é um autor que tenta falar da eternidade com os recursos do tempo comum
O santo e o homem comum se confundem, como os séculos que são todos os mesmos, nas mãos de um autor que tenta falar da eternidade com os recursos do tempo comum. O afeto que há nessa escrita lembra o que Emily Dickinson escreveu numa carta: “há algo de tão ternamente profano até mesmo na mais sagrada vida humana”.
Este é o quinto livro de Leandro Durazzo, mas o primeiro em prosa. O autor nasceu e cresceu em Santos (SP). Vive hoje em João Pessoa, depois de ter morado em várias cidades e países. Publicou, em 2011, um ensaio sobre Jorge de Lima feito a partir de seu trabalho de mestrado em letras na ufpe. Depois do mestrado, deu início a um doutorado sobre o budismo chinês, que abandonou; agora realiza um outro em etnologia indígena na ufrn. Entre 2014 e 2017, publicou três livros de poesia. Todas as suas publicações foram lançadas por editoras independentes, e sua única incursão por uma casa maior foi com dois poemas na antologia É agora como nunca, organizada por Adriana Calcanhotto para a Companhia das Letras (2017).
Entre o ensaio, a poesia e a prosa, Durazzo transita por formas diferentes de linguagem com uma mão segura. Para dizer muito brevemente, no texto acadêmico ele tem clareza, na poesia, simplicidade e ritmo: “Limpar/ as migalhas/ da mente// deixá-las cair/ sobre o chão/ e varrer”.
Na prosa, sua escrita fica mais experimental. Cada uma das partes desse Mar explora um tom narrativo diferente. Em comum nas três, há algo de uma oralidade aprendida — isto é, o que a literatura passou a chamar de “oralidade”, aquilo que aparece, por exemplo, em Guimarães Rosa ou no próprio Jorge de Lima.
Durazzo escreve conhecendo e mobilizando vozes, apropriando-se delas. Recusa um tom individual. Não é um autor em busca de encontrar sua voz. Essa dissolução do “eu” na escrita parece ser a tradução formal de uma procura espiritual. As perguntas que seu texto levanta — o sentido do universo e do vazio, Deus, a razão da vida humana, o tempo e a eternidade — são, afinal, espirituais. Leandro Durazzo tem muitas questões nas mãos. A sorte dele é que as tem nas mãos. Se fosse um outro tipo de autor, ele as levaria na cabeça, e seus textos se dissolveriam em abstrações. Do jeito como trabalha, o indizível e o inabarcável viram uma questão de ritmo e rima.
É um autor que merece mais leituras. E o livro mereceria mais comentários e interpretações. Seus futuros leitores talvez possam encontrar nesse Mar de viração o prazer que eu mesma pude ter: o prazer que é descobrir algo novo e bonito.
Matéria publicada na edição impressa #20 Mar.2019 em fevereiro de 2019.
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