Literatura,

A vida romanesca de um fabulista

Nova edição de Esopo traz fábulas sobre animais, histórias protagonizadas por humanos e a primeira tradução integral de narrativa clássica sobre sua vida

12nov2018 | Edição #5 set.2017

Celebridades transformam-se em autores, hoje, com a mesma rapidez industrial com que autores são transformados em ídolos: por razões mais vinculadas à sua própria existência do que à qualidade das obras que produzem. A ideia de uma autoria invisível contrariaria os anseios das celebrações do presente. Mas nem sempre foi assim.

No século 18 inglês, época de enorme importância para a origem dos jornais e do comércio de livros, manter a autoria oculta era o modo habitual de preservar a integridade de quem ousava escrever. Não havia quem sonhasse com liberdade de expressão para todos. O governo, com a miopia de seus eficientes censores, previa penas severas para escribas que o atacassem ou fossem sediciosos contra os princípios em voga.

Jonathan Swift (1667-1745) e Daniel Defoe (1660-1731), os dois autores que a posteridade tomou pelos mais importantes dessa época, foram ambos afetados pelo terrorismo censório que caçava e castrava opiniões divergentes. Swift, sacerdote em Dublin, teve a cabeça a prêmio, por um panfleto em defesa da Irlanda, e publicou sob anonimato a maioria de seus textos satíricos. Já o operoso Defoe, autor de mais de quinhentos títulos, não só foi posto na cadeia por crimes de pensamento, como também amarrado no pelourinho de Londres, em praça pública, para aí ficar sujeito à execração dos passantes.

A autoria invisível, no caso dos fabulistas mais antigos do mundo, não se liga tanto à prudência. A dificuldade em estabelecer quem foram os criadores dos textos diz respeito à própria origem das fábulas, que em geral são tidas por provindas do imaginário coletivo e se conservaram de início por transmissão oral, sendo assim submetidas a modificações decorrentes de cada tempo e lugar.

Há séculos, as fábulas mais conhecidas no Ocidente, graças a uma infindável corrente de traduções, adaptações, imitações ou paráfrases, são as atribuídas à autoria grega de Esopo. No entanto, como lembra o tradutor André Malta, “Esopo parece ser uma figura lendária, com pouca sustentação histórica”. Além disso, alguns temas das fabulações esópicas foram talvez elaborados nas vastidões da antiga Ásia, pois também estão presentes em fontes como o Pancatantra hindu. E a primeira edição em sânscrito dessa obra com histórias de animais, só organizada na Alemanha em 1848 por J.G.L. Kosegarten, baseou-se em onze diferentes manuscritos, entre os quais prevaleciam por norma grandes discrepâncias. Embora o Pancatantra se declare da autoria de um brâmane, Vishnusarman, sobre quem nunca se soube nada, admite-se que seu texto original resultasse de uma compilação muito tardia, feita já na era cristã e repleta de citações e matérias de procedência diversa.

Considerando que os vícios e os erros denunciados nas fábulas — como a esperteza e a ganância, a injustiça e a prepotência — são mais típicos da espécie humana do que comuns entre os bichos, o hábito de atribuí-los a esses pode ter sido um disfarce inteligente que a voz do povo criou para evitar represálias. Ainda que soe leve, a fábula, sob esse aspecto, irmana-se às chicotadas da sátira. Ambas pretendem fazer rir. Mas os risos que provocam, tornando-se ensinamentos, mostram como a vida castiga os desnaturados que impõem seu interesse aos demais.

O interesse por Esopo, desde os primeiros séculos cristãos, foi uma constante na Europa. Uma seleta com um pouco mais de uma centena de suas fábulas, traduzidas para o latim por Fedro, passou a ser um exemplo memorável para a preservação da língua latina nos mosteiros e educandários católicos. A receptividade a esse material se irradiou a tal ponto, ao longo da Idade Média, que temas oriundos do fundo esópico acabaram se infiltrando nos acervos narrativos das novas línguas e países formados nos espaços antes colonizados por Roma.

Tanto antes quanto depois de La Fontaine (1621-1695), muitos outros passaram para línguas vernáculas as fábulas de Esopo e Fedro. Se suas produções não perduraram, ao passo que as do mestre francês demonstram incrível resistência contra os desgastes do tempo, é porque esse se revela, mais do que simples reciclador de historietas antigas, um poeta de inventividade e recursos bem acima da média. Ao retomar temas de Esopo, aos quais juntou outros igualmente extraídos de fontes anteriores, La Fontaine os desenvolveu num sistema todo próprio de versos irregulares, em geral de doze, dez, oito e seis sílabas, que tornou a condução das narrativas muito mais eficaz do que teria permitido a opção por um metro único.

No Brasil, foram comuns as adaptações de Esopo, voltadas em geral para o público infantil e quase sempre retraduzidas de línguas europeias modernas. Entretanto, desde a última década do século passado começaram a surgir traduções mais criteriosas, feitas do grego, como as de Neide Smolka (Moderna, 1994), Manuel Aveleza (Thex, 1999) e Nicolau Firmino (L&PM, 2001). A mais recente dessa nova série, a fluente tradução de Maria Celeste Consolin Dezotti, inclui 383 fábulas e é assim a mais completa de todas. Lançado pela Cosac Naify em 2013, o livro teve a seu favor um belo projeto gráfico, marca tão típica da extinta editora, com excelentes ilustrações de Eduardo Berliner.

A tradução que agora nos chega, da Editora 34, reúne dois tradutores que também são professores de língua e literatura grega na USP. André Malta selecionou, traduziu e apresenta, em edição bilíngue, 75 fábulas, que precedem o Romance de Esopo, “uma construção imaginativa”, segundo ele, mas texto que mesmo assim se aproxima de uma biografia fabulada do autor, traduzido e comentado por Adriane da Silva Duarte.

Partindo da evidência de que no grego de Esopo “o estilo é simples, com uma sintaxe direta, sem volteios e sem muita variação”, André Malta diz ter porém evitado a simplificação excessiva, em português, já que sua intenção foi “mimetizar parte do movimento do original, para que fosse possível intuir um pouco do fraseado”. Essas e outras observações sobre seu trabalho, como a relacionada aos cuidados para “indicar o contexto predominantemente oral em que as fábulas surgiram”, dão a entender a meticulosidade erudita que orientou o preparo da atual edição. Por trazer o texto grego espelhado no corpo das traduções, sem dúvida ela será valiosa para estudantes e estudiosos da língua.

Para o público em geral, assumem particular interesse as 33 fábulas sem a presença de animais, como “O adivinho”, “O astrólogo”, “O médico incompetente” e “O cavaleiro careca”, pouco conhecidas no Brasil, e que têm claro e fustigante espírito satírico. Somam-se elas às 42 fábulas com animais, entre as quais figuram várias das mais famosas de Esopo, como “A galinha dos ovos de ouro”, “A raposa e o cacho de uva” e “A cigarra e as formigas”.

Outro alto ponto de interesse do livro é o Romance de Esopo, pela primeira vez publicado no Brasil em sua forma integral. Das três recensões usadas pela tradutora para obter um texto fiel, a atribuída ao bizantino Máximo Planúdio circulou amplamente pela Europa, desde a Idade Média, com o título Vida de Esopo mantido em adaptações variadas. De uma dessas versões se apossou La Fontaine, que em 1668 a inseriu como introdução na impressão original de suas primeiras fábulas. Até hoje esse texto é reimpresso, nos mesmos moldes antigos, nas edições mais confiáveis do autor, como a de Jean-Pierre Collinet para a Gallimard.

Ao optar por Romance, Adriane Duarte quis “enfatizar o sentido ficcional e, nesse sentido, ‘romanceado’ da narrativa”, na qual Esopo transita “entre o real e o lendário”. Para a tradutora, o fabulista que está descrito na obra, tão híbrida e tão modificada ao sabor do vento das cópias, é “um herói protopicaresco”, sendo o audaz personagem que aí entra em cena “uma figura marginal, oriundo das classes populares e representante de seus valores, contrapostos aos da elite aristocrática e intelectual”.

Fabulistas são poetas, e os poetas, como ‘antenas da raça’, têm o ouvido das crianças sensíveis

Escravo proveniente da Frígia, na atual Turquia, Esopo nos é dado, no seu Romance, por um homem de aspecto repugnante e disforme: baixo, corcunda, barrigudo, vesgo, manco, negro e de nariz achatado. Além disso, no começo da história ele parece um grande idiota, porque é mudo, e somente por intercessão da deusa Ísis, que lhe concede uma graça para recompensar seu valor interno, será capaz de aprender a falar. Desde que o faz, o horroroso Esopo se transforma num cativante fulgor de inteligência.

O diálogo que ele trava com o filósofo Xanto, quando esse o compra como escravo, resume a tônica dos numerosos episódios seguintes, onde Esopo sempre leva a melhor — e como! — ao discutir com os poderosos e os sábios. O mercador que o vendia mostrou-o a Xanto entre dois outros escravos, ambos fortes, saudáveis e bonitos, que garantiram ao filósofo, ao serem interpelados por ele, que sabiam fazer tudo. Esopo, assim que ouviu as respostas, por duas vezes desatou a rir. Xanto então passa a interrogá-lo, num longo exame que aqui se sintetiza. O filósofo indaga: “De onde você vem?”. Esopo: “Venho da carne”. Xanto: “Mas onde nasceu?”. Esopo: “No ventre de minha mãe”. Xanto: “Eu perguntei em que lugar”. Esopo: “Isso minha mãe não me disse, se nasci no quarto ou na sala”. Xanto: “E o que você sabe fazer?”. Esopo: “Absolutamente nada”. Xanto: “Por que nada?”. Esopo: “Porque os escravos ao meu lado disseram que sabem fazer tudo”.

Depois dessa, Xanto não só o compra, preterindo os bonitões, como faz do feioso seu mais precioso arrimo nas controvérsias que terá de enfrentar. Liberto, Esopo irá de corte em corte, disputado por monarcas como conselheiro sagaz, até ser condenado à morte, por uma injusta tramoia, na última cidade, Delfos, em que seu brilho desperta inveja e rancor. 

É curioso registrar que o tradutor de Esopo para o latim, Fedro, que esteve ativo no primeiro século da era cristã, mas sobre quem ainda menos se sabe, também entrou na tradição como um escravo liberto que, depois de muito impressionar por seus dotes, acabou sendo de igual forma processado e punido pelos poderosos de Roma.

É provável que o núcleo do Romance de Esopo, segundo afirma sua tradutora, tenha se originado “na tradição oral, remontando a vários séculos antes da consolidação das variantes escritas, o que só ocorreu por volta do século 2 d.C.”. Com isso voltamos pois à ideia de autoria invisível, como se houvesse em tais produtos, mais que a afirmação gloriosa de uma individualidade isolada, o esgarçamento puro e simples de uma criatividade comum a toda a espécie.

Fabulistas são poetas — e os poetas, como “antenas da raça” (Pound), têm o ouvido das crianças sensíveis para entender sussurros e urros. Sabem que os animais falam muito, mais até do que os inquietos tagarelas humanos, e que a envolvente voz do mundo é uma pulsante orquestração de sentidos que se conjugam aos nossos. Falam o vento, com assovios e silvos; a chuva, com a bateria de seus pingos; o fogo, com o crepitar de suas chamas; os rios, ora com o manso borbulhar do fluir, ora com estrondos encachoeirados; o mar, com seus avanços e recuos; etc. e tal. Só não escuta quem não quer.

Quem escreveu esse texto

Leonardo Fróes

É autor de Trilhas: poemas 1968-2015 (Azougue).

Matéria publicada na edição impressa #5 set.2017 em junho de 2018.