Literatura,

A vida dói

Em coletânea de contos de Katherine Mansfield, personagens se refugiam na alienação para não encarar a infelicidade

01mar2021 | Edição #43

Se o fluxo de pensamentos pode complexificar a percepção da realidade, ele também pode ser um desvio brusco da vida. Na coletânea de contos A festa ao ar livre e outras histórias, de Katherine Mansfield, tida como pioneira da introspecção psicológica, as vias da dimensão imaginária nunca desembocam no esclarecimento ou na melhor compreensão das coisas. Pelo contrário, o desdobramento final é o alívio da alienação ou a constatação amarga da infelicidade. 

Último dos três livros de contos da ficcionista neozelandesa, A festa ao ar livre foi publicado em 1922, mesmo ano em que Mansfield, morta precocemente em 1923 em decorrência da tuberculose, escreveu seu testamento. É de notar, portanto, a forte presença da morte nas quinze narrativas que formam a coletânea. 

A breve obra de Mansfield foi admirada por Clarice Lispector e Virginia Woolf. Aliás, o conto que intitula a coletânea, relançada pela Nova Fronteira com tradução revisada e apresentação de Luiza Lobo, remete ao enredo de Mrs. Dalloway, já que nos dois textos certa redoma de futilidade das festas burguesas é furada por uma morte inesperada. A felicidade enlatada e rigidamente roteirizada, então, vacila diante da invasão da finitude. 

Outra dedicada leitora de Mansfield foi Ana Cristina Cesar, que tem uma fantástica tradução comentada do conto “Bliss” — em geral traduzido como “Felicidade”, mas que na sua versão ganhou o título de “Êxtase”, presente no volume Crítica e tradução (Companhia das Letras, 2016). Numa rigorosa análise, a poeta brasileira levanta alguns pontos que auxiliam na leitura de A festa ao ar livre, como a sugestão de uma tonalidade entre o poético e o prosaico, uma tensão em “perpétua (e simétrica) oscilação”. 

Emudecimento 

A coletânea é aberta com “Na baía”, o mais longo dos quinze contos. Ao se dedicar à construção de um dia na terra natal da escritora, a narrativa se demora no delineamento do cenário com imagens bonitas e cuidadosas. As narrativas posteriores tendem a um tratamento mais empenhado dos personagens que dos espaços. As cores aparecem para pintar os cenários, enquanto a ironia surge como recurso para explorar as vidas interiores e as margens de erro que restam entre a cadeia de pensamentos e a realidade material. 

A breve obra de Katherine Mansfield foi admirada por escritoras como Clarice Lispector e Virginia Woolf

A narração onisciente é prevalente, com apenas dois contos narrados em primeira pessoa, “A jovem” e “A empregada de madame”. No primeiro deles, o narrador ainda se assemelha ao dos outros contos porque se dedica a observar o amadurecimento precoce e forçado de uma jovem filha de uma adicta em jogos de azar. Já em “A empregada de madame”, a narradora fala de si. É algo como um monólogo sobre a abnegação de uma empregada que se recusa a ter uma vida própria para não abdicar da patroa. O desfecho se dá com a constatação de que pensar é nocivo, seguida por reticências. Existe, portanto, um percurso interno da coletânea que tende a uma característica mais lacônica, ao mesmo tempo que a visão geral da história de abertura vai se afunilando para se deter em existências mais específicas. 

Traço notável na construção da narração é a ironia, capaz de provocar um riso quase constrangido, presente na descrição dos personagens e seus estados de ânimo por meio de curiosas analogias, como o desconforto de um jovem perante o avô moribundo, em “As filhas do falecido coronel”, ilustrado como alguém que está no dentista. A ironia também é ferramenta para caracterizar as relações entre ricos e pobres, particularmente como forma de expressar algo que, na intenção dos personagens privilegiados, se esboça como uma decorosa pena mas se transforma num acanho desorientado. 

Em “A festa ao ar livre”, uma jovem rica se sente desafortunada por um vizinho pobre morrer bem no dia em que ela daria uma festa. Ao se ver obrigada a pronunciar alguma palavra à família do defunto, a menina emudece e a única coisa que consegue dizer é “perdoe o meu chapéu”. Em “A vida da Mãe Parker”, a complacência dos ricos é atribuída a um personagem apresentado como literato que, querendo se mostrar gentil, diz o seguinte sobre o sepultamento do neto da empregada: “Espero que o enterro tenha sido um… um sucesso”.

As reticências são um recurso frequente de Mansfield, por vezes como encerramento das narrativas. Elas apontam o descompasso entre a vida interior e a forma de expressá-la e os limites das introspecções dos personagens, como uma parede que não pode ser ultrapassada. É uma expressão da vida cotidiana mais pelo que é calado do que pelo que é revelado, de modo que a alienação em relação a si mesmo é uma fuga bem-sucedida da infelicidade. Tanto em “As filhas do falecido coronel” quanto em “A aula de canto” e “O primeiro baile dela”, esse desvio ganha a forma do esquecimento de algo que foi pensado e elaborado e do qual foi possível se esquivar. 

A outra possibilidade é a constatação incontornável da insatisfação, por vezes sob a forma da assimilação de algum acontecimento externo que impede a proteção na ignorância. Sobre “Bliss”, Ana Cristina Cesar diz que se trata de um “sentido da realidade que desfecha o golpe final”, o que parece valer também para histórias como “A srta. Bill”, na qual uma fantasiosa moça enfeita sua rotina insossa com a impressão de fazer parte de uma alegre peça de teatro e um dia é surpreendida por comentários maledicentes a respeito da sua aparência. A partir daí, fica inviável encharcar de açúcar a áspera repetição dos dias. Em “A vida de Mãe Parker”, a protagonista se pergunta ao longo do conto se existiria um espaço no mundo onde poderia sofrer pelas perdas de sua vida sem ser objeto de pena, e o narrador intervém para encerrar bruscamente: “Não, não havia lugar nenhum”. 

Os finais entre o refúgio na ignorância e o encontro com a aspereza garantem à epifania um sentido tão cômico quanto desolador, porque a compressão da infelicidade em pequenos sintomas que possam afastar a dor dá a sensação de ser um esforço subjetivo tão risível quanto reconhecível. Dessa forma, a alienação não ganha uma acepção pejorativa, como a de um vício que pertence aos outros, mas sim a de uma ferramenta quase desejável. Afinal, saber que a vida dói e acaba é bastante duro, e não é todo dia que é possível constatar a infelicidade e a finitude e sair ileso.

Quem escreveu esse texto

Iara Machado Pinheiro

É crítica literária, doutoranda em letras pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #43 em fevereiro de 2021.