(NASA)

Literatura,

A grande beleza

Misto de ficção científica realista e ensaio lírico, Orbital narra as complexidades, a grandeza e a insignificância de se ver a Terra à distância

25jun2025

Uma paixão da minha vida de leitora é o que chamo de histórias de um cômodo só. São essas narrativas minimalistas em seu cenário, mas em geral ricas em argumento: as personagens se encontram e o conflito se desenrola apenas a partir de suas interações. É o caso de Deus da carnificina, de Yasmina Reza (Âyiné, 2021), Quem tem medo de Virginia Woolf?, de Edward Albee (Grua, 2020) e alguns livros de Ali Smith (como Winter, ainda não publicado no Brasil). Tenho certeza de que você se lembrou de outras dessas histórias. O nome não é tão exato: em algumas, o cômodo pode ser um apartamento, uma casa, um hotel.

No caso de Orbital, romance da inglesa Samantha Harvey vencedor do Booker Prize em 2024 e publicado no Brasil com tradução de Adriano Scandolara, esse cômodo se transforma em uma estação espacial. Mas, diferente de outras dessas narrativas, em que o cômodo é apenas o palco de uma interação baseada em diálogos e argumentos, a estação não é um espaço presente só para receber uma história. Ela é inóspita, artificial. “A estação, completamente desperta, sempre desperta, vibra com filtros e ventoinhas”, como é descrita pela primeira vez. É algo quase vivo, constantemente presente, delimitando a experiência de quem está ali. 

E quem está ali? Seis astronautas (uma inglesa, um italiano, um americano, uma japonesa e dois russos), realizando suas pesquisas ao mesmo tempo que convivem e fazem a manutenção da nave, dos sistemas e do próprio corpo — o que, se você já não sabia pelo canal da Nasa no YouTube, é um baita trabalho que envolve pelo menos duas horas de exercícios diários para que os músculos dos astronautas continuem funcionais apesar da gravidade zero. E são essas seis pessoas que acompanhamos durante 24 horas — um dia por aqui, dezesseis voltas ao redor da Terra para eles. 

Orbital tem uma proposta relativamente simples, que não envolve um grande aprofundamento dessas pessoas como indivíduos. Em alguns momentos da narrativa, elas parecem constituir uma personagem coletiva, notada pela bagunça que acabam deixando ao redor da estação. “São, uns para os outros, representantes da raça humana — cada um deles precisa ser suficiente para representar bilhões de pessoas”, afirma o narrador. Ainda assim, conhecemos algumas de suas aflições pessoais, como a morte da mãe de Chie, que ocorre quando ela já está na estação, ou a maneira com que ela cuida dos ratos que lhe servem de cobaias; a preocupação de Pietro com um amigo quando vê à distância um tufão se aproximando de onde ele mora; ou os sonhos de Anton de um dia ir para a Lua. Ainda assim, eles parecem trabalhar para que um propósito maior da narrativa se cumpra.

Voz intrusa

Quem junta as vozes das personagens é um narrador muito intrigante. Mais do que a história de um cômodo, mais do que o trabalho com uma personagem quase coletiva que às vezes se desdobra em indivíduos, é a voz narrativa que dá uma unidade curiosa para o texto. É um narrador onisciente — um belo capítulo sobre os sonhos das personagens enquanto dormem exemplifica isso muito bem — e intruso, que realmente toma o espaço da narrativa para si. Por um momento, durante a leitura, cheguei a cogitar que o narrador seria a própria estação espacial, vendo o vai e vem de astronautas ao longo de muitas órbitas. Essa hipótese caiu por terra (sem perdão pelo trocadilho), e o mais próximo que cheguei foi aquele clichê de ver o narrador como a voz da autora. 

Isso porque, além de intruso e onisciente, o narrador também tem seus momentos abusados, como um “pense numa casa” na página 42, como se eu já não estivesse imaginando tudo isso que estava me dizendo até então. E chega até numa primeira pessoa do plural mais para o desfecho do livro com um “talvez sejamos”. E um tom que acabou sendo, no fim, mais ensaístico do que narrativo, e muito mais preocupado em falar sobre a experiência humana a partir da estação do que entrar de fato nas personagens. Essas pessoas são apenas pedaços de um todo maior — mal são apresentadas no começo do livro e demoramos um tempo para criar uma imagem melhor de quem é quem. 

Esse narrador, que não é nem uma personagem em primeira pessoa nem um narrador-em-terceira-pessoa-porém-discreto, é difícil de não se notar. Há uma vontade de mostrar o absurdo e a beleza da presença humana no espaço — e de nos convencer disso. Ou mesmo do absurdo e da beleza da presença humana, ponto. Mas deixa o texto com um quê de artificialidade que combina muito bem com o resto do livro; afinal, não há nada natural em uma estação espacial orbitando o planeta. E essa artificialidade absurda das comidas desidratadas, da gravidade zero, do convívio forçado com outros que eram quase desconhecidos até então, é reforçada quando narrada com intrusão e onisciência por uma voz desconhecida.

A autora busca mostrar também o que é sair do eixo: como é organizar a vida e um dia produtivo no molde a que os corpos humanos estão acostumados, ao redor de 24 horas, mesmo quando essa base deixa de ser uma referência válida; quando a Terra é avistada como o objeto tridimensional que de fato é, e não em uma das projeções cartográficas que aprendemos a ver, o que incentiva uma nova maneira de ver proximidades e distâncias geográficas; e mesmo a ausência de fronteiras para além de continente e oceano. 

Ao mesmo tempo, essa artificialidade contrasta com um certo toque de natureza. Harvey usa com frequência animais em suas descrições (“o espaço é uma pantera”, “voar até a estação é como ter dois ursos negros em cima do peito” e “morar ali é como morar numa lata de sardinha”, tudo isso no primeiro capítulo apenas) e nos lembra que, apesar de serem cientistas confinados em um dos objetos que mais simbolizam nosso avanço tecnológico, essas pessoas ainda são indivíduos que sentem falta de seus familiares e são permeados por traumas, sentimentos e vontades — como, afinal, é quase todo mundo. 

Contemplação

Uma contradição apresentada com sutileza e habilidade pela autora é relacionada ao capitalismo. Parte dessa contradição é histórica: a estação tem uma divisão para a Rússia e outra para um convênio Estados Unidos-Europa-Japão. Mas, nesse espaço onde o consumo parece não ter significado (afinal, não há o que comprar ou vender dentro da estação), o próprio corpo se torna uma espécie de bem. 

A descrição da rotina de 24 horas dessas pessoas nos mostra que elas estão sempre fazendo algo, uma atividade incessante. Não há lugar para a contemplação desnecessária. Entre pesquisar, cuidar do corpo, cuidar da estação, seguir protocolos e preencher relatórios, resta pouco tempo para ser humano, exceto aquele intervalo ocasional para olhar pela janela e ver o que Carl Sagan chamou de um “pálido ponto azul”, que para eles é uma bola viva e gigante. 

É justamente nesses momentos, nessas olhadelas por vezes furtivas, que se abre espaço para o humano. E esse humano parece ser o que mais interessa ao livro — a vontade de ressaltar a beleza que existe no mundo —, principalmente quando é possível ver essa existência a uma certa distância. “Aqui em cima, legal parece uma palavra tão alienígena. É brutal, desumano, avassalador, solitário, extraordinário e magnífico. Não há uma única coisa que seja legal”, afirma o narrador. 

Talvez este seja o centro, o grande tema: a beleza. E os humanos frente à beleza, ao desconhecido, a um sentimento de ser pequeno diante da grandeza, mas também de fazer parte dessa grandeza. Ou melhor, de testemunhá-la. 

Em um movimento um tanto clichê, mas justificado na economia da obra, a autora nos apresenta um capítulo com uma comparação temporal dessas que você já deve ter visto pela internet: se a história do universo fosse um ano, o começo de tudo em 1° de janeiro e o momento atual em 31 de dezembro, em que momento os humanos surgem? As estimativas indicam que chegamos perto do Ano-Novo, o que mostra tanto a nossa insignificância na história do universo quanto o fato de que toda a nossa história, os milênios que entendemos como um longo período que já temos dificuldade de compreender, são apenas minutos nessa trajetória. E o curioso é que é justamente isto que a autora faz com o livro: tenta dar conta de sentimentos que fogem das 24 horas de fato narradas. 

Estamos acostumados a pensar a ficção científica como aquela que se baseia em avanços e especulações sobre as inovações tecnológicas na nossa sociedade. O que aconteceria se pudéssemos viajar pelo universo? Se encontrássemos alienígenas? Se os robôs e a inteligência artificial tomassem conta do mundo? (Algumas perguntas começam a soar assustadoramente factíveis­ hoje, diga-se.) 

O romance de Harvey se aproxima disso ao especular sobre a vida e as sensações a bordo de uma estação espacial. A narrativa, no entanto, soa bem mais realista — talvez por não extrapolar tanto o limite da ciência que é possível, mas também por estar preocupada em narrar o que há de mais humano em um grupo de seis pessoas que se afasta do resto da humanidade. E é isso que traz toda a beleza e a poesia dessa humanidade. 

Quem escreveu esse texto

Gisele Eberspächer

Gisele Eberspächer é jornalista, tradutora e apresentadora do canal do YouTube “Vamos falar sobre livros?”.