Literatura,

A estrela do desassossego

Novo romance de Karl Ove Knausgård mantém escrita da minúcia, agora com nove narradores diferentes

18jun2024 - 15h50
Cometa pintado no verso do quadro São Jerônimo penitente, do renascentista alemão Albrecht Dürer. Óleo sobre madeira, séc. 15 (Divulgação)

Reencontrar uma antiga paixão é uma empreitada arriscada. O objeto de desejo está ali, ainda belo, interessante, mas parece outro, sem o brilho que, enfim suspeitamos, vinha do olhar do apaixonado. Foi essa a minha sensação ao ler Estrela da manhã, a volta do autor norueguês Karl Ove Knausgård ao romance depois dos diversos livros de não ficção que se seguiram à série autobiográfica Minha luta.

Uma estrela aparece de repente no céu. Esse é o ponto de convergência entre as nove histórias narradas alternadamente, todas em primeira pessoa. A sucessão de detalhes e gestos banais com reflexões íntimas que já conhecemos da prosa de Knausgård continua presente, mas agora esmiúça o cotidiano e o pensamento de outros narradores, com diferentes profissões, idades, características físicas e psíquicas. Arne, que abre o romance, diz, por exemplo:

O maior equívoco que eu podia cometer era tentar esconder a gordura, andar com camisas grandes e calças largas na crença de que ninguém perceberia enquanto não houvesse nada pressionando a malha de dentro pra fora. O que se via nessa situação era um gordo envergonhado. E isso era pior que um simples gordo, porque sugeria a proximidade de um elemento desconfortavelmente pessoal e íntimo. Cuspi a pasta de dente na pia, enxaguei a boca com água da torneira e coloquei a escova no copo da prateleira. Afinal, não era másculo ser grande? Não era masculino ter um peso extra?

As vozes se modificam de uma narrativa para outra, mas o olhar exageradamente aproximado para os detalhes e uma cadência específica do ritmo, não, ainda que, no decorrer do romance, uma tensão vá se tornando mais aguda. Coisas estranhas passam a acontecer depois do surgimento da estrela: animais aparecem em bandos e enxames, enfermos em situações críticas simplesmente não morrem. A tensão transborda do incomum para o cotidiano, e em certos momentos o ritmo se torna frenético mesmo na descrição de procedimentos rotineiros, seja em uma enfermaria psiquiátrica, seja nos cuidados com uma bebê, como se fossem situações dignas de um filme de ação, como se a inquietação já estivesse na própria vida e escolhêssemos não vê-la para deixar correr os dias.

A tensão transborda do incomum para o cotidiano, e em certos momentos o ritmo se torna frenético

A estrela e outros fatos inexplicáveis vão transtornando a vida de cada um dos personagens, que oscilam entre a incredulidade e o medo. Esta leitora também se viu temerosa e incrédula, perguntando-se se aquele Knausgård de antes havia escrito um romance de terror salpicado de clichês. Afinal, uma narrativa em que uma pessoa que não fala de repente diga a uma mulher aterrorizada que ela está condenada, ou em que um gato morto desaparece do lugar onde foi enterrado, assume ares desse gênero. Mas tudo aqui pode ter uma explicação científica ou racional, e Knausgård, aparte a própria estrela, fica em cima do muro: a mulher aterrorizada pode não estar sã, o gato pode estar poucos centímetros para o lado, e quando um paciente psiquiátrico diz que “o demo está lá fora agora mesmo”, isso pode se dever somente ao seu delírio, ainda que, amparado pela tensão construída, o romance sustente a dúvida.

Não fosse o surgimento da estrela, o desassossego que extravasa as páginas e a frouxa conexão entre as personagens, as narrativas poderiam ser tomadas como contos. Além de quase fechadas em si mesmas, cada novo começo requer o esforço sutil de ter que se familiarizar com um novo mundo. Os poucos pontos de contato operam como insinuações que reforçam a tensão: um gato que passeia em uma história pode ser o que desapareceu da terra na outra, por exemplo; a descrição de uma personagem pode ser feita pelos olhos de outro narrador, como a de Mathilde, recepcionista do hotel onde se hospeda a pastora Kathrine, que por sua vez nos surpreende, desde sua história, revelando segredos que a outra tardou em dizer. Isso, no entanto, não é uma recorrência, o que torna a conexão entre as histórias irregular.

Outro ponto de contato entre as narrativas é o calor. Tudo se passa em dois dias de agosto, e a Noruega está parecendo o hemisfério Sul — pelos trinta graus que fazem todos escorrerem em suor e talvez também pelo medo que, aparte a crise climática e as pandemias mundiais, não costuma assolar os escandinavos.

A luta e a estrela

Quem chega a Estrela da manhã depois de Minha luta provavelmente tem a sensação de identificar as entranhas do autor, de onde viriam as questões que suscitam o romance. A belíssima comparação de Arne entre o álcool e a maré que enfim alivia os escolhos secos faz remeter ao alcoolismo do pai de Karl Ove e a suas próprias bebedeiras, assim como a mania psicótica de Tore remete à de Linda Knausgård. A lembrança do mesmo Arne de uma queda de bicicleta atesta mais uma vez a possibilidade de invenção das lembranças, embaralhando os limites entre realidade e ficção: “A memória desse episódio todo era provavelmente falsa, baseada em histórias que eu tinha ouvido, e não em uma coisa que eu realmente tivesse vivenciado. Era impossível saber com certeza”.

Mas há uma diferença crucial entre Minha luta e a nova série de romances de Knausgård, que ele mesmo ainda não sabe quantos volumes terá, provavelmente seis ou sete. Uma diferença que ao mesmo tempo guarda uma semelhança. Se em Minha luta Knausgård pretendia escrever a realidade mesma a partir de si, ou seja, o todo — ainda que a possibilidade desse empenho ser bem-sucedido talvez seja a ficção maior —, aqui ele parece continuar querendo escrever tudo, mas agora esse todo vai além da ciência.

Trata-se de um livro perturbador, inovador, tanto horrível quanto impossível de largar

Egil é um documentarista frustrado que se converte ao cristianismo. Sobre sua conversão, ele diz:

O problema com a nossa época era que a humanidade engolia tudo, e que já não existia mais um lado de fora. A despeito de onde você estivesse, você encontraria olhos ou coisas já vistas por outros olhos. De certa forma, essa era uma ideia tão distante da fé quanto se poderia chegar.

A fé, sobre a qual Knausgård se debruça em Estrela da manhã, seria então o acesso ao “fora” da humanidade, depois que o “dentro” já teria sido esgotado em Minha luta. As reflexões dos diversos personagens sobre a fé e sobre a morte compõem um mosaico em que considerações religiosas, filosóficas e científicas tomam parte para dizer desse lugar que a humanidade, que abocanha tudo com o conhecimento, não consegue alcançar.

O entrelaçamento entre o mítico-religioso e o literário se dá a ver, por exemplo, com a aparição de diversas víboras na floresta quando Egil está procurando uma macieira de que lembrava em sua infância. É impossível, aqui, não entender a infância como a da própria humanidade: a história de Adão, Eva, sua maçã e sua serpente, como se o surgimento da estrela (ou qualquer cataclisma apocalíptico) significasse uma nova saída do Éden, que a aparição do conceito de eterno retorno de Nietzsche algumas páginas antes teoriza.

Projeto anterior

Enquanto Minha luta foi aclamado pela crítica literária mundo afora, Estrela da manhã recebeu resenhas tanto elogiosas quanto bastante depreciativas. A minha opinião não seria a soma de ambas — seria ambas ao mesmo tempo. Trata-se de um livro perturbador, inovador, tanto horrível quanto impossível de largar. Me vi tomada por uma avidez que me fazia, no entanto, querer saltar as quedas no ritmo quando apareciam as costumeiras descrições knausgardianas do céu e das árvores que em Minha luta faziam tanto sentido. Encontrar aqui a mesma alternância entre o mundano e o reflexivo sem o projeto autobiográfico de escrever a vida como ela é coloca em questão o projeto anterior; a gratuidade agora desnuda o fato de que talvez nem sequer antes essa justificativa existisse, o que me leva a questionar até que ponto os leitores e a crítica as inventaram a posteriori para justificar seu apreço.

Quanto à atmosfera de terror, isso sim se justifica como o mais puro realismo, nestes tempos tais que a insistência em continuar seguindo uma vida cotidiana banal chega a parecer uma atitude de dissociação.

Quem escreveu esse texto

Natalia Timerman

Psiquiatra e escritora, é autora de Copo vazio (Todavia).