Divulgação Científica, Literatura infantojuvenil,

Um manual para não piorar as coisas

Livro propõe doze missões para as crianças e os adultos que desejam diminuir seu impacto no planeta

01out2021 | Edição #50

Folhear o Manual para super-heróis logo após a divulgação do novo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)  pode gerar certo estranhamento em quem entende o tamanho do buraco em que estamos metidos. Não é fácil tirar da cabeça a irreversibilidade de parte dos efeitos do aquecimento global, a expectativa de eventos extremos sem precedentes e a necessidade de uma redução drástica na emissão de gases de efeito estufa se quisermos evitar uma catástrofe ainda maior. O sentimento de emergência e a dificuldade de se manter otimista contrastam com a capa do livro, em que mãos se unem para segurar o planeta Terra acima do subtítulo “o início da revolução sustentável”.

A proposta é que os leitores transformem o mundo após passarem por doze missões, da economia de água e energia à compostagem do lixo orgânico. Rapidamente me peguei questionando a maneira como, muitas vezes, permitimos que as crianças (e nós mesmos) acreditem que as atitudes individuais têm um quê de radical, quando cada vez mais elas se parecem com cuidados de etiqueta — ou o mínimo que podemos fazer para não piorar a situação. Mas o livro vai além do que aparenta. Entre uma missão e outra, há pequenos choques de realidade e doses de incerteza quanto ao futuro.

Como enfrentar os vilões

A autora Laila Zaid, mais conhecida por seu trabalho nos palcos, na tv e no cinema, coloca os aspirantes a super-heróis frente a frente com vilões como a crise do clima, o desmatamento, o plástico e a poluente indústria da moda. Para enfrentá-los, é preciso cumprir tarefas que vão das “molezinhas” às “difíceis à beça”, desafiadoras até para os adultos, especialmente por tratarem de mudanças de hábitos. “Fazer, fazer, fazer, até virar rotina” é o mantra do manual.

No primeiro grupo estão medidas simples, como apagar as luzes ao sair de um cômodo e fechar a torneira enquanto se escovam os dentes. No segundo aparecem o desafio de plantar a própria comida — o tomateiro no vaso da sala já vale — e o de diminuir o consumo de carne, o que a autora chama de “missão secreta”, já sabendo que nem toda família vai gostar. Há ainda atividades divertidas, como montar um esquema de troca de roupas entre amigos e vizinhos para que cada peça seja usada ao máximo. Outra proposta é reutilizar objetos para produzir a decoração das festinhas e até mesmo os próprios brinquedos.

A cada capítulo há pontos de parada para o leitor sinalizar, de lápis na mão, o status da missão. Essa é a hora de contar como está se virando, o que deu certo e se pintaram desafios ao longo do caminho, além de calcular a própria pontuação até o momento. No final do livro, a soma dos pontos indica em que tipo de herói a criança se transformou. Quem chegou longe se torna um modelo a ser seguido e uma promessa de futuro ambientalista, enquanto quem não teve tanto sucesso é parabenizado por seu esforço e incentivado a seguir tentando, sem pressa.

Por trás de cada tarefa há um pouco de contexto e pistas indicando que as mudanças em nível individual são trabalho de formiguinha ante o tamanho da crise. O leitor vai ficar sabendo sobre a origem da nossa eletricidade e os prós e contras de cada fonte de energia; a falta de planejamento urbano; o desperdício de água no agronegócio; a contaminação dos oceanos; e o problema dos combustíveis fósseis. Ao explicar o aquecimento global, a autora conta que nada mais será como antes. A inspiração para não se sentir desmotivado vem da fábula de um beija-flor que tenta apagar sozinho, levando no bico gotinhas de água, um incêndio na floresta. “Eu não sei se vou conseguir, mas estou fazendo a minha parte”, diz.

Desigualdade social

Se por um lado o livro manda a real sobre, por exemplo, a morte de animais marinhos engasgados com plástico ou presos em redes — há inclusive fotos tristes na “página secreta” —, por outro alivia a barra de alguns vilões. Pouco se fala sobre as desigualdades sociais, que, consequentemente, geram impactos desiguais. Quem não tem o que comer não tem lixo para gerar. O ranking de países mais sustentáveis do mundo poderia ter sido aproveitado para contar aos pequenos que também há abismos entre os países. Para que alguns fiquem mais “verdes” e “limpos”, outros se enchem de indústrias e de lixo. Na hora de apresentar aliados, fala-se das ongs, mas não se toca no poder do voto e no estrago que governantes negligentes são capazes de fazer. São assuntos delicados e complexos, mas que, conversados com jeitinho, podem ajudar a criar adultos conscientes e com os pés no chão.

Não sabemos exatamente onde o futuro vai dar — apesar de esperarmos o pior — nem o real impacto das nossas mudanças individuais. O livro ajuda com o que de fato sabemos: hábitos menos prejudiciais para o planeta são possíveis, não nos custam tanto assim e podem até ser divertidos. Talvez possamos esperar alguns anos para contar às crianças que isso não é bem uma revolução. 

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Bia Guimarães

Jornalista, é mestre em divulgação científica e cultural e co-criadora do podcast de ciência 37 Graus
 

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.