A escritora mineira Maura Lopes Cançado (Acervo pessoal/Divulgação)

Literatura brasileira,

A lucidez poética da ‘loucura’

Hospício é Deus vai além da denúncia às instituições psiquiátricas e revela a liberdade criativa e a pulsão de vida de Maura Lopes Cançado

10jan2025

A biografia de um autor pode ajudar a compreender sua obra, mas a obra transcende o autor, fazendo-se valer por ela mesma. E é possível, e muitas vezes desejável, separar analiticamente a obra da biografia, ainda que estejam interligadas. Esse é o caso de Maura Lopes Cançado (1929-93). 

Apesar de ter sido internada várias vezes por problemas psiquiátricos e de ter morrido num manicômio judicial por ter matado outra interna durante um surto psicótico, a mineira teve dois livros publicados, o que foi suficiente para fazer dela uma escritora memorável. Porém, muito se fala sobre sua vida e pouco se fala sobre sua literatura.

Hospício é Deus, originalmente publicado em 1965, foi reeditado pela Autêntica em 2016 e relançado pela Companhia das Letras em 2024, com apresentação de Natalia Timerman e de Maurício Meireles. O tema da loucura é onipresente, mas o leitor vai descobrir , caso não saiba, que o doente não se limita à doença, assim como a loucura não diz tudo sobre o “louco”. 

O livro em forma de diário revela Cançado em momentos de lucidez intercalados com crises de agressividade que chegam à violência física, apesar de seu  “corpo de bailarina” e sua “voz infantil”. Para quem encerra o louco na sua loucura, associada ao comportamento irracional, a não compreensão da realidade, alucinação e delírio, a autora revela um outro lado que não é apenas morbidez, mas também pulsão de vida, liberdade criativa, perspicácia e coerência na escrita, distante das convenções sociais e estéticas da época. 

Sua escrita traz o desejo de se deixar levar pela beleza do estranhamento e por uma força lírica que busca tocar o inalcançável para, no momento seguinte, desistir de tudo. Segundo ela, coisas e pessoas se tornam vivas apenas na distância, porque assim pode imaginá-las como bem quiser: “As coisas perdidas ou inalcançadas foram as únicas que possuí”. 

O desígnio de agarrar as palavras para dar conta de uma realidade estranha é revelado na acuidade com que constrói metáforas, no vocabulário que tudo particulariza e na vastidão do repertório citado pela autora, que inclui Sartre, Nietzsche, James Joyce, Fernando Pessoa e Clarice Lispector (estava lendo Cidade sitiada ao escrever o diário). Contudo, Cançado não chegou a concluir o ensino médio e aprendeu a ler e escrever sozinha, aos cinco anos. A mãe dizia ser um equívoco os filhos terem mais estudo do que os pais, mesmo assim tentou ajudá-la a prosseguir. Mas os colégios se recusavam a receber uma mulher de dezesseis anos, que já era mãe e separada do marido.

Revelações

Sabe-se que o narrador em primeira pessoa é aquele de quem o leitor mais deve desconfiar. Sabe-se também que, para muitos, até hoje o depoimento de um homem tende a ser mais crível e confiável que o de uma mulher. Hospício é Deus foi escrito por uma mulher, “louca”, sexualmente livre, e é narrado em primeira pessoa. Talvez isso bastasse para que o leitor não acreditasse no que lê. Mas Cançado nos faz acreditar em cada palavra. 

Ela consegue isso pela força expressiva da linguagem presente nas revelações ousadas sobre si mesma, como sua constante confrontação com o medo: “O dia. As horas. Cada instante. Às vezes medo. Não às vezes: de trás de tudo o medo”. Com quatro anos, ao ouvir comentários sobre a morte de seu padrinho, ela foi tomada pelo medo da morrer e ser enterrada viva. Conforme crescia, se deu conta de que o maior de todos os medos era o de si mesma: “me desconheço completamente. Meus atos me surpreendem tanto a mim quanto a outras pessoas”. 

Nada escapa à perspicácia de Cançado, que desnuda e denuncia tudo à sua volta, mostrando ser incapaz de se proteger e expondo suas manias persecutórias e a ansiedade que a acompanha desde criança. A garota que desejava ser “normal”, era capaz de captar o que não se diz e o que ninguém mais vê. Sua autocrítica radical conduz à autopunição e a declarar sem justificativas seu “desejo de sofrer e de fazer sofrer”.

Cançado desnuda e denuncia tudo à sua volta, mostrando ser incapaz de se proteger

Sua prosa poética empresta às metáforas e às analogias uma precisão incomum, como a “parede de vidro”, que expressa a incomunicabilidade afetiva e cognitiva entre ela e qualquer outra pessoa. A despeito da solidão psíquica, passa o dia dançando e é capaz de uma enorme empatia, colocando-se no lugar de outras internadas para descrever a violência e a falta de compreensão com que são tratadas. Ao lado disso, a narradora expressa sua capacidade de troca afetiva e de amor, como, por exemplo, ao falar sobre o médico psiquiatra negro pelo qual se apaixona. “O médico é o campo luminoso aonde vou todos os dias. Ou sou em quem se ilumina perto dele?”

Hospícios, colégio, quartéis e asilos configuram o que o sociólogo Erving Goffman chama de instituição total, espaços em que os internos são impedidos de sair e onde levam uma vida controlada. Internos são destituídos de privacidade e do poder de decisão. Por isso, as instituições totais levam à degeneração do “eu civil”,  da imagem que o interno faz de si mesmo, assim como impede que ele interfira na imagem que os outros fazem dele. Uma instituição total, assim como Deus, enclausura a identidade do sujeito e seu modo de vida porque tem poder disciplinar, de julgamento e castigo. No diário, Cançado confessa que cresceu com a certeza de que iria para o inferno, pois jamais amou a Deus, imposto como um ser “poderoso e vingativo” de quem “nada era possível esconder”, que tudo vê e julga — um ser tão incompreensível quanto o hospício. 

O livro é ainda repleto de indagações existenciais e epifanias. Cançado escreve como se visse tudo pela primeira vez: as descobertas de si, a dinâmica do hospício, a intenção por trás do gesto mostrando a mesquinhez e a perversão. Não evita temas difíceis, não faz concessões. A narradora faz perguntas a si mesma indefinidamente e, a principal delas — “por que estou internada?” — acaba por deixar tudo em suspenso, ainda que ela diga o motivo que a fez se internar voluntariamente. 

Cançado testemunha a crueldade e a não-escuta normalizadas na relação entre médicos, funcionários e internados e o desamparo dos últimos. Mas Hospício é Deus não deve ser lido apenas como testemunho e denúncia, e sim como uma contribuição valiosa à literatura brasileira.

Quem escreveu esse texto

Ana Cristina Braga Martes

Socióloga e escritora, é autora de A origem da água (Confraria do Vento)