Ciências Sociais, Filosofia,

Raios de luz em debates obscuros

Livro de Bobbio esclarece, de forma concisa, temas e problemas fundamentais da filosofia política

09nov2018 | Edição #4 ago.2017

Quantas respostas têm as perguntas “o que é democracia?” e “o que é o Estado?”? A quem devemos formular essas perguntas? Como conduzir, então, um confronto entre democracia representativa e direta, ou entre um Estado que intervém sistematicamente na sociedade e outro que se atém a tarefas básicas? 

Esses são confrontos de primeira ordem no Brasil. Confrontos densos tanto em termos do ferramental de que se deve dispor para compreendê-los quanto da mentalidade para julgar seus possíveis desenlaces. Nada a ver com as soluções “ao gosto do cliente” acessíveis na internet.

Daí que, aos não interessados no papel de consumidor dessas soluções, uma boa pedida é Estado, governo, sociedade, de Norberto Bobbio (1909-2004), jurista e filósofo italiano de grande presença intelectual no Brasil, que a Paz e Terra relança em edição  revista, com posfácio de Celso Lafer.

É uma boa pedida, em particular para não especialistas. Não que o livro só abrigue simplificações, renuncie a aprofundamentos, mas, como escreve Bobbio no prefácio à 2ª edição, os textos que o compõem, originalmente destinados a uma enciclopédia, têm um objetivo essencialmente didático. São fragmentos de um dicionário político, que se propõem a esclarecer conceitos e questões fundamentais da filosofia e ciência políticas, em sua intersecção com o direito, a sociologia e a história, por meio de incursões concisas por autores e temas clássicos. É um livro que ilumina a origem e a persistência de problemas e teorias cuja (re)elaboração conceitual e prática cabe a nós.

A forma de abordagem desses problemas e teorias merece um comentário, pois ela normalmente se inicia com a apresentação de um termo ou conceito-chave e seu contrário, que constituem ou desaguam no problema/teoria. Bobbio conduz seus raciocínios a partir de antíteses, de modo que “um dos dois termos ilumine o outro, tanto que frequentemente um… é definido como a negação do outro”.

A primeira das antíteses tratadas no livro é “público/privado”, que se exprime tanto na distinção entre a utilidade do indivíduo e a utilidade comum quanto na distinção entre o que é manifesto, aberto aos espectadores, e o que é realizado em segredo ou num círculo restrito de pessoas. Da primeira distinção emergem dois primados: o do privado sobre o público e o do público sobre o privado. Bobbio registra que, reproduzido no par política/economia, o primado do público sobre o privado é interpretado como primado da política sobre a economia, e se manifesta na intervenção dos poderes públicos na regulação da economia.

Paralelamente, desenvolve-se o processo inverso, em que o Estado como mediador de conflitos sobranceia o Estado como detentor do poder de império. Esses dois processos interpenetram-se um no outro: enquanto o primeiro reflete a “subordinação dos interesses do privado aos interesses da coletividade representada pelo Estado que invade e engloba progressivamente a sociedade civil”, o segundo “representa a revanche dos interesses privados através da formação dos grandes grupos que se servem dos aparatos públicos para o alcance dos próprios objetivos”. Trechos que nos soam familiares hoje.

“Sociedade civil/Estado” é a segunda dicotomia a que Bobbio se dedica. São termos que se implicam e que receberam diferentes significados ao longo do tempo, consolidando-se a visão da sociedade civil como o lugar onde se desenvolvem os conflitos econômicos, sociais etc., integrados por grupos de interesse, movimentos sociais e, claro, partidos. Estes transitam entre a sociedade civil e as instituições com a função de agregar e transmitir as demandas da primeira; demandas que frequentemente não encontram respostas adequadas por parte do Estado.

Reinterpretando o tema da governabilidade das sociedades complexas nos termos da dicotomia “sociedade civil/Estado”, Bobbio destaca que a ingovernabilidade de uma sociedade resulta do aumento das demandas da sociedade civil “com a capacidade de resposta do Estado alcançando limites talvez não mais superáveis (donde o tema, por exemplo, da ‘crise fiscal’)”.

No capítulo seguinte, sobressai a discussão das relações entre Estado, direito e poder. Bobbio ressalta o processo de limitação jurídica do poder político, que se consolidou com a teoria da separação dos poderes e o constitucionalismo, que impôs ao Estado o dever de proteção/promoção de direitos veiculados constitucionalmente (o avanço do poder político sobre direitos alegadamente intocáveis dos cidadãos é outro tema em voga no Brasil).

Na discussão das formas de governo, a travessia das tipologias clássicas culmina no registro da importância do sistema de partidos na distinção daquelas formas. Importância que se estende à discussão das maneiras de Estado, no interessante confronto feito pelo autor entre o Estado estamental, em que se formam contrapoderes (ao poder soberano) representando interesses de categorias, e o atual Estado representativo. Para Bobbio, a diferença entre os dois está em que “a representação por categorias ou corporativa (hoje se diria representação de interesses) é substituída pela representação dos indivíduos singulares… aos quais se reconhecem os direitos políticos”.

Mas essa extensão dos direitos políticos tornou necessária a constituição de partidos organizados, transformando o Estado representativo em Estado de partidos, no qual — em discutível aproximação ao Estado estamental — “os sujeitos políticos relevantes não são mais indivíduos singulares, mas grupos organizados, embora organizados não à base de interesses de categoria ou corporativos, mas interesses de classe ou presumidamente gerais”.

O último capítulo do livro atravessa os modos pelos quais a democracia foi definida e avaliada na história, passando por suas diferentes interpretações e realizações concretas. Em seu último esforço dicotômico, Bobbio traça um interessante contraste entre a compreensão e a avaliação, nossa e dos antigos, do conceito de ditadura.

Se a missão do intelectual é restabelecer a confiança no diálogo – como já disse Bobbio–, Estado, governo, sociedade cumpre esse papel ao fincar bases conceituais e históricas. 

Quem escreveu esse texto

Marcelo de Azevedo Granato

É juiz e doutor em direito pela Università degli Studi di Torino.

Matéria publicada na edição impressa #4 ago.2017 em junho de 2018.