Filosofia,

O novo do moderno

Marcos Nobre faz exegese da Introdução da “Fenomenologia do espírito”, de Hegel, e reitera sua capacidade de explicar o presente

20nov2018 | Edição #12 jun.2018

A “Introdução” à Fenomenologia do espírito, obra publicada por Hegel em 1807, conta com cerca de uma dezena de páginas. Por que fazer deste texto, por natureza apenas introdutório à coisa mesma, o objeto privilegiado de um livro de mais de trezentas páginas, sendo cerca de duzentas delas dedicadas justamente a traduzi-lo e analisá-lo, linha a linha, palavra por palavra? Pois é isso o que faz Marcos Nobre em Como nasce o novo

A resposta à pergunta encontramos em sua visada penetrante: ele vê ali, nessa peça introdutória, a exposição de um modelo filosófico único, de alta complexidade especulativa e imenso alcance compreensivo, capaz até mesmo de propor uma reinterpretação da filosofia contemporânea em sua versão “Teoria Crítica”. 

Como nasce o novo não é um trabalho de mero comentário de texto, mas uma tomada de posição nas disputas especulativas mundiais mais recentes; não é simples história da filosofia, é sobretudo filosofia.

Em sua origem se encontra uma operação hermenêutica de risco nada pequeno, mas de imensa riqueza crítica. Trata-se de pensar a Fenomenologia do espírito em sua autonomia e validade própria, sem tomá-la com os olhos da obra posterior, já solidificada no sistema enciclopédico (de 1817), no qual a história da formação da consciência e do espírito — a tal fenomenologia do espírito — não ocuparia senão uma parte diminuta do sistema. Seria, quando muito, um ensinamento introdutório, uma propedêutica, a ele. Tal decisão se justifica recorrendo às condições de produção do texto e aos seus correspondentes “diagnósticos do tempo presente”. Se, em 1806-7, Hegel escreve a Fenomenologia tendo sob os olhos as guerras napoleônicas e, portanto, a expansão da modernidade oriunda da Revolução Francesa, ele propõe um “modelo filosófico” de crítica do presente e da consciência filosófica moderna em vista da realização dos potenciais da modernidade: daí que a Fenomenologia tenha o sistema em seu horizonte, mas permaneça aberta ao advento do novo — Marcos Nobre chega a caracterizá-la como um work in progress

Por sua vez, se em 1817 Hegel expõe a Enciclopédia das ciências filosóficas, modelo filosófico sistemático, fechado, que perpassa todos os domínios do saber, é porque, sob o impacto da Restauração, momento de uma “modernidade normalizada”, altera seu diagnóstico do tempo, querendo garantir as conquistas modernas, mesmo que fazendo concessões ao velho: “um compromisso entre o velho e o novo, entre o Antigo Regime e a modernidade napoleônica”. 

O livro é uma tomada de posição nas disputas especulativas mundiais mais recentes

Operação hermenêutica arriscada, mas de imensa riqueza crítica, dizíamos. Arriscada, afinal, porque, diriam os scholars hegelianos, tem de desconsiderar alguns textos de Hegel anteriores à Fenomenologia que já mostram a preocupação com o sistema e, até mesmo, os delineamentos do que viria a sê-lo no futuro. Mas não vale a pena correr esse risco? A riqueza crítica que a proposta interpretativa de Como nasce o novo traz consigo o justifica.

Com ela nasce uma Fenomenologia que é sobretudo uma crítica da consciência filosófica moderna mais avançada (a kantiana), porque esta ainda não estaria à altura de seu tempo: não teria tomado consciência de si mesma e de seus procedimentos, trazendo consigo, dessa forma, uma série de entraves que impediriam a realização plena das potencialidades que a modernidade (e Napoleão) anunciava, do que nela é novo. 

Experiência da consciência

E o que é novo na modernidade? É que ela é a primeira época “no desenvolvimento do espírito que não tem de transformar-se estruturalmente, não tem de passar a outra época, para conseguir lidar e resolver as contradições que a habitam”. Hegel empreende essa crítica e essa tomada última de consciência na forma de uma “ciência da experiência da consciência”, isto é, de uma gênese filosófica dessa consciência moderna, recordando todo o processo histórico, dos percalços e experiências que lhe ocorreram, que a cada vez foram lhe estruturando e lhe formaram. 

Tomando consciência de si pela rememoração de seu processo de produção, a consciência filosófica dissolve os entraves que a limitavam, liberando o potencial emancipador da modernidade de autodeterminação e autonomia, sua capacidade de certificar por si suas próprias normas — o novo do moderno. 

Daí o potencial crítico que a Fenomenologia, enquanto modelo filosófico, carrega consigo: ao explicitar a “experiência” em toda a sua completude, ela é uma crítica do presente que permite a abertura para o advento do novo. E todo esse projeto ganha sua formulação lapidar, justamente, na “Introdução” da obra, momento em que se definem seu projeto e método. Por isso, o interesse por ela.  

Tudo isso permite a Marcos Nobre repensar de modo original a tradição à qual se filia. Primeiro, reconstruindo toda a história da Teoria Crítica a partir dessa oposição entre modelo aberto da fenomenologia e sistema reformista da enciclopédia — e aí as obras de Lukács, Horkheimer, Habermas e Honneth são enfeixadas pelo esquema. Depois, reatualizando o modelo fenomenológico de ciência da experiência da consciência a fim de pensar a formação das subjetividades modernas no mundo capitalista e seus processos de dominação. 

Hegel escreve a ‘Fenomenologia’ tendo sob os olhos a expansão da modernidade oriunda da Revolução Francesa

Por fim — e salvo engano, aqui se encontra a grande originalidade do livro —, em mostrar que a oposição entre “Teoria Tradicional” e “Teoria Crítica”, que Horkheimer estabeleceu no ensaio homônimo de 1937 e que ele fazia remontar à crítica da economia política de Marx, já pode ser encontrada no modelo filosófico da Fenomenologia do espírito, na medida em que a crítica da consciência filosófica moderna (limitada) — da Teoria Tradicional — só pode ser empreendida a partir dessa gênese de sua produção e nascimento — ou seja, enquanto Teoria Crítica. 

 Interpretação que concilia grande erudição, análises finas e precisas — algumas definitivas — e de grande alcance filosófico, Como nasce o novo não deixa de ser uma compreensão renovada, nova, de Hegel — nisso ela faz jus a toda grande filosofia: encontra nela mesma a explicação de seu modo de surgimento. Forma e conteúdo nunca vêm separados.

Quem escreveu esse texto

Francisco Prata Gaspar

É doutor em filosofia pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.