Filosofia,

A filosofia e a forma orgânica

Questões tratadas por pensadores como Hume, Kant e Darwin anteciparam ciência que hoje conhecemos como biologia

20nov2018 | Edição #12 jun.2018

A filosofia e sua história encontram-se em questão no livro A trama da natureza, de Pedro Paulo Pimenta. É um privilégio da filosofia, lê-se na conclusão, “ter reservado para si […] o direito de se pronunciar única e exclusivamente sobre conceitos, sem se comprometer […] com a obrigação de aplicá-los diretamente ao “mundo real”.  A filosofia, pelo menos depois de Hume e Kant, ocupa-se da trama dos conceitos, não da verdade; da relação dos signos entre si, não de sua relação com as coisas.

É uma trama de conceitos que o livro desfia diante do leitor — mais precisamente, o diálogo entre determinadas filosofias que, de Hume a Darwin, construíram uma nova maneira de pensar ou uma nova forma de racionalidade, no interior da qual a natureza passou a ser pensada como sistema. Não se trata de uma trama qualquer, entre as tantas que poderiam reter a curiosidade do historiador, mas justamente daquela que tornou possível pensar a própria filosofia como sistema. O autor vai buscar, assim, na filosofia da natureza do século das Luzes as referências teóricas a partir das quais baliza a sua própria compreensão da filosofia e de sua história.

O livro se constrói ele mesmo como uma trama, um conjunto de ensaios independentes tratando dos problemas enfrentados e as soluções propostas pelos filósofos e naturalistas do período, empenhados em pensar a forma orgânica, a vida e a história natural. Essa questão de fundo é tomada e retomada num sistema de remissões, em que as diversas perspectivas pelas quais foi abordada, por Hume, Diderot, Buffon, Cuvier, Lineu, Kant, Lamarck, Darwin, entre outros, são apresentadas de uma maneira densa e não linear, evitando-se a todo custo descrever a história em questão como se o fim (no caso, o darwinismo) estivesse prefigurado desde o início. 

No lugar disso, trata-se de mostrar como esses pensadores, na medida em que se referiam uns aos outros, por contraposição ou complemento, foram aos poucos tramando uma nova maneira de pensar que terminou por conferir à biologia o estatuto de uma ciência.

O foco do livro não está, porém, na arqueologia da biologia. O nascimento da biologia desponta no conjunto dos ensaios apenas como um efeito colateral da forma de pensamento que se organizou em torno do organismo como problema. A referência principal nesse caso é Kant, em especial a Crítica do juízo, a chamada terceira crítica, em que Kant instituiu o organismo enquanto enigma. A Crítica do juízo está no miolo e no coração do livro. A partir desta obra, a trama se alarga, para trás, para frente, para os lados, ao redor dos diversos discursos produzidos entre o século 18 e 19 em também da forma orgânica.

A filosofia, pelo menos depois de Hume e Kant, ocupa-se da trama dos conceitos, não da verdade; da relação dos signos entre si, não de sua relação com as coisas

O livro mostra que Kant não inventou o enigma, mas deu expressão a uma dificuldade conceitual em torno da qual gravitava boa parte da produção intelectual do seu tempo: a dificuldade de pensar a forma orgânica depois que a ciência do século 17 expulsou os fins do âmbito da natureza. Para o modelo de explicação mecânico da ciência moderna, toda finalidade é externa à natureza: é uma finalidade técnica, a finalidade que está na cabeça do artífice (no caso, Deus), mas que não se inscreve no artefato. A natureza é pensada a partir daí como um relógio, cujo funcionamento é explicado de forma mecânica, a partir das causas eficientes.

Contudo, a mecânica mostrou-se insuficiente para dar conta de um conjunto de problemas. Como pensar a partir das causas eficientes o indivíduo e o princípio de individuação? Como pensar a unidade de um composto, e, ainda, a de um composto que permanece o mesmo ao longo de um processo de transformações? Como pensar a forma orgânica? E a relação dessas formas entre si? Como pensar o todo que compõe o que entendemos por natureza? Para responder a essas questões, pareceu ser preciso aos filósofos das Luzes reintroduzir a finalidade no seio da natureza. Nesse caso, torna-se possível dizer que o que responde pela unidade de uma multiplicidade é a maneira como as partes se relacionam entre si, de forma a exercer uma determinada função ou realizar um fim. Como porém dar lugar a explicações finalistas dessa ordem, sem desalojar a mecânica e sua força explicativa? Como conciliar o organismo e a máquina?

Sistemas

A saída magistral de Kant foi a de conjugar a mecânica e o finalismo como tipos de  explicação que remontam a exigências internas da razão humana. São maneiras de pensar ou formas de racionalidade, que não apenas não se excluem, como se complementam, como partes de um sistema de pensamento, em que consiste para Kant a razão. Com isso, Kant não apenas pensou o organismo, como fez do pensamento um tipo de organismo. Nisso, foi antecedido por Hume, outra referência central do autor, guardadas as diferenças no modo de pensar o sistema. O caráter sistemático do pensamento esteve também no centro do grande projeto das Luzes que foi a Enciclopédia, cuja edição brasileira saída em 2015 pela mesma editora Unesp conta com a organização e tradução do autor.  

Assim, o que está em questão no livro de Pedro Paulo Pimenta é muito mais do que uma maneira de pensar a natureza. O que está em jogo é um modelo a partir do qual tornou-se possível para a filosofia das Luzes pensar a linguagem, a história, a obra de arte, a sociedade, além do próprio pensamento: são todos sistemas. Daí porque o livro não se ocupe apenas dos naturalistas, mas também de figuras como Adam Smith, cuja famosa imagem da mão invisível pretende descrever a sociedade como um conjunto de práticas articuladas em torno de um fim, o resultado da interação entre as partes, imprevisto na origem. 

É esta maneira não técnica, mas reflexiva de pensar a finalidade que as filosofias analisadas por Pedro Paulo Pimenta terminaram por produzir. Tais análises, muito finas e rigorosas, constituem uma referência indispensável não apenas para aqueles que se interessam pela filosofia das Luzes, como, em geral, por filosofia.

Quem escreveu esse texto

Maria Isabel Limongi

Filósofa, é autora de Hobbes (Zahar).

Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.