Encontro de Leituras,
Os desacontecimentos
Mia Couto investe novamente no romance histórico, mas retoma a veia fantástica para narrar a perda da capacidade de escrever
27nov2024 • Atualizado em: 28nov2024 | Edição #88 dez“A palavra é uma bala: não tem recuo” e “Quem fica calado, também fala” são alguns dos provérbios que abrem os 93 subcapítulos dos catorze capítulos do novo romance de Mia Couto. O escritor moçambicano afirmou em entrevista a Rita Souza Vieira para o canal da Fnac Portugal no YouTube que as expressões são parte da tradição local antes de se narrar uma história, algo como um bater à porta e pedir licença. E a história que Couto narra em A cegueira do rio é a de um “desacontecimento”, como ele chama os episódios históricos que caem — ou são caídos — no esquecimento.
É o caso do ataque alemão ao posto militar português de Madziwa, no norte de Moçambique, em agosto de 1914, cerca de um mês depois da Primeira Guerra estourar no continente europeu. A ação deixou doze mortos: onze sipaios africanos e um sargento português. A região da África Oriental Portuguesa, como Moçambique era conhecido até 1975, era há muito cobiçada pelos alemães, que ocupavam ao norte a África Oriental Alemã (atuais Tanzânia, Burundi e Ruanda).
A neutralidade de Portugal no conflito não impediu que tropas alemãs tentassem invadir a colônia portuguesa. O resultado foi uma campanha militar hoje esquecida que resultou em quase 150 mil mortos do lado português, a grande maioria nativos obrigados pelo jugo colonial a servir às forças da metrópole.
O autor mostra que todos são capazes de cortar o narrador e contar a sua perspectiva da história
Outro “desacontecimento” na região do rio Rovuma, na divisa entre Moçambique e Tanzânia, resgatado pelo romance é a Revolta dos Maji Maji (1905-1907). Esse movimento explodiu na então colônia alemã depois das autoridades forçarem a cultura do algodão em um cenário de seca extrema e fome. Guiada pelo líder espiritual Kinjikitile Ngwale, que passou a se chamar Bokero depois de alegar ter sido possuído pelo espírito de uma cobra, a população atacou posições da administração colonial. A resposta alemã foi um massacre que matou de 200 mil a 300 mil camponeses.
A memória desses episódios surge através dos personagens do romance, que os viveram e carregam suas cicatrizes visíveis e invisíveis. Mas só puxar os fios dessas meadas não pareceria condizente com o poder de uma literatura tão inventiva como a de Couto, que retratou os horrores da guerra civil moçambicana em romances como Terra sonâmbula e O último voo do flamingo e os impasses da África pós-colonial em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. O elemento fantástico tão marcante dessas obras — e que estava ausente na épica trilogia histórica As areias do imperador — reaparece aqui na forma de uma epidemia planetária que provoca a agrafia, isto é, a perda da capacidade de escrever. Os negros, que não são afetados, assistem aos brancos sucumbirem em uma espiral de loucura.
Reparação
É nesse cenário quase distópico, com ecos do Ensaio sobre a cegueira de José Saramago, que Couto lança as bases para um ato de reparação histórica. Nas palavras de uma batuqueira que se apresenta como filha de Bokero:
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Queremos que vás ao palácio. E ensines esses brancos a escrever. Leva Nataniel, leva o Matias. Vai ao palácio e ensina os vazungo a escrever. Se estiverem cansados que deixem por escrito uma única palavra. Essa palavra é “desculpa”. Depois, os portugueses que peguem nas coisas deles e metam-se num barco. Mais tarde, podem voltar a Moçambique. Na próxima vez, porém, eles que batam à porta e peçam licença. Estas terras não estão vazias. Estas terras têm donos e são muito antigos. Eles que deixem tudo isso por escrito.
Duas equiparações que acontecem ao longo da narrativa são importantes e merecem lembrança.
Primeiro, o uso dos provérbios de etnias da região do rio Rovuma, como os yao e os makwa. Na entrevista citada, Couto afirma que “esses provérbios não são uma coisa menor, para os etnógrafos ou antropólogos tratarem, eles são literatura e quero colocá-los no mesmo nível do texto literário moderno”. Assim, dividem espaço com um trecho de Coração das trevas, o brutal romance de Joseph
Conrad sobre o Congo Belga, e versos de Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto, Mahmoud Darwish e Wisława Szymborska, além de pensamentos de Aimé Césaire.
Segundo, ao decidir intercalar a narrativa em terceira pessoa com relatos de personagens em primeira pessoa, o autor mostra que todos são capazes de cortar o narrador e contar a sua perspectiva da história, seja o sargento português Bruno Estrela; seu ajudante, o sipaio Nataniel Jalasi, que sempre sonhou em “ser um civilizado”; Matias Kirimi, que odeia Nataniel desde que o irmão abraçou o universo dos brancos; a vidente Aluzi Msafiri e o padre Sisnando Baião, que formam um par improvável; ou o carroceiro Chifuniro Winifome, que não entende que paz é essa pela qual os brancos temem. “Há uns que se queixam de que a paz vai terminar”, diz ele. “Pois que termine e termine rapidamente! Que paz é esta? Não há, entre nós, pobres negros, quem não viva em guerra a vida inteira. É a guerra para sobrevivermos e darmos de comer às nossas crianças.”
Depois da vasta pesquisa bibliográfica que desembocou nos romances dedicados ao imperador Ngungunhane, que liderou a província moçambicana de Gaza na última grande rebelião contra o domínio português, Couto investiu mais três anos na escrita de A cegueira do rio, incluindo uma viagem ao Niassa, no noroeste do país. A região de florestas ainda quase intocadas é de difícil acesso — o autor não gosta da palavra “remota”, carregada de certa bagagem colonial visto que o referencial sempre é a capital. Citado no romance, o livro A guerra que Portugal quis esquecer, do jornalista português Manuel Carvalho, foi importante para posicionar no horizonte do ficcionista a empreitada desastrosa de Lisboa para defender suas possessões africanas durante a Primeira Guerra.
Talvez a melhor síntese desse romance exemplar na exploração das potencialidades da literatura como guardiã de uma memória coletiva é a que aparece como um excerto da Bíblia que o padre Sisnando escreve às escondidas, despertando a ira das autoridades eclesiásticas: “Os europeus precisam da realidade para acreditar nos sonhos. Os africanos precisam dos sonhos para acreditar na realidade”.
Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024.
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