Encontro de Leituras,

O evangelho segundo Valter Hugo Mãe

Em romance com contornos de fado bíblico, escritor português demole modelos de santidade para abrir caminho para os afetos humanos

01jul2024 - 10h56 • 01jul2024 - 11h52 | Edição #83
(Nelson d’Aires/Divulgação)

Na primeira frase de Deus na escuridão é dito que “Pouquinho nasceu sem as origens”. Formulação que pode trazer a dúvida ao público brasileiro: seria uma expressão lusitana, como outras que por vezes se desconhece no país? Ou, ainda, uma caracterização geográfica, através de um termo típico da Ilha da Madeira, lugar onde a história se passa e do qual o autor extraiu certos modos de articulação da língua? Bem, nenhuma das alternativas: trata-se mesmo de uma construção original, tão inusitada para os conterrâneos de Mãe quanto para leitores de outros países. Quem conhece o trabalho do autor deve saber: uma de suas características é colocar leitoras e leitores nessa posição de estranhamento quanto à linguagem.

O que nos leva a outro traço comum nos romances de Mãe, também presente em Deus na escuridão: a construção alicerçada na contemplação cotidiana de um rol de personagens, mais do que na constante movimentação de engrenagens do enredo. À semelhança de trabalhos como O filho de mil homens (Biblioteca Azul, 2016), o que temos aqui é um núcleo de tipos pertencentes a classes menos privilegiadas, em um espaço algo mítico, ora em comunhão de suas dificuldades e sentimentos, ora em fricções de ordem socioeconômica (mas também existencial) ou ideológica. Uma coisa louvável no trabalho de Mãe é que essas relações escapam ao didatismo antropológico, de fáceis explicações.

A Baronesa, única personagem endinheirada da trama, é um exemplo: sua caracterização poderia cair em um pastiche de madame cruel e fútil, porém seu destino trágico e de desilusão lhe dará contornos espantosos. No que o romance tem de mais instigante — a demolição silenciosa de certos modelos de santidade — a Baronesa representa um dos maiores acertos.

Dividido em três partes (“O nascimento de Pouquinho”, “O evangelho segundo aqueles que sofrem” e “Felicíssimo irmão”), o romance é centrado nos dois irmãos que nomeiam a primeira e a última delas: Felicíssimo, o mais velho e narrador em primeira pessoa, cujo nome de batismo é Paulo; e Pouquinho, apelido de Serafim, que, ao nascer, dá início à história. A alcunha vem do fato de o menino ter nascido bastante miúdo, de pouco peso e, em especial, sem os órgãos genitais: as tais origens:

Teria um corpo sem desejo, como o das flores. Por mais belo, bom, educado ou feliz, atravessaria sua vida, certamente encurtada, como quem exerce a purga sem parar.

A ausência de sexo, enquanto signo de suposta pureza e o nome angelical são apenas algumas de suas correspondências com figuras celestiais, que alcançarão o paroxismo na segunda parte, quando os irmãos são mostrados na idade adulta. Pouquinho será tido como uma espécie de santo pelos demais habitantes do Campanário, região da Ilha da Madeira onde moram. E onde os precipícios estão sempre próximos.

O dilema imposto a dois irmãos leva o narrador a ressignificar o amor e seu próprio sistema de crenças

Antes disso, na infância retratada ao longo da primeira parte, o irmão mais velho já o terá colocado em uma posição santificada, assim como sacraliza as mulheres e, em especial, as mães. Esse idealismo, pareado ao amor, é um dos eixos principais do romance. O capítulo que dá nome ao livro, situado no ponto do meio entre todos os outros, parte da premissa de que “Deus é exactamente como as mães”, a fim de pôr em equivalência as formas como essas duas entidades amam. Um amor de abnegação, como o protagonista tenta aprender, enquanto se debate com sua inclinação a um afeto de matiz obsessivo.

Tais categorizações quanto ao amor — a Deus, às mulheres e às mães — poderiam ser atribuídas unicamente à visão de Felicíssimo, como sói acontecer em histórias narradas em primeira pessoa. Em especial, quando se tem um narrador não confiável. A forma como a história é composta, no entanto, traz mais confirmações do pensamento de Felicíssimo do que contrapontos.

Amor idealizado

Um conflito intenso e transformador do protagonista se dará apenas na segunda parte, depois de Pouquinho sair de casa para se unir a uma mulher, como um casal. A partir de então, o livro ganha a força que parece, em muitos momentos, carecer à primeira parte, na qual faltam tensões quanto ao que o protagonista vive e no que acredita.

A emancipação e o relacionamento de Pouquinho colocam a Felicíssimo um embate quanto ao elo com seu “santo”, como o chama. Expõe o que seu amor idealizado tem de possessivo. Também é curioso que se case aquele de quem se esperaria a pureza sexual, enquanto o irmão mais velho permanece no celibato e o sexo represente para ele sempre um problema. Há muitos espelhamentos no livro — inclusive, um espelho da casa se torna objeto cênico de grande expressividade — e eles também se acentuam na segunda e terceira partes.

O dilema que vai se impor mais adiante, para os dois irmãos, colocará à prova, afinal, a visão de mundo de Felicíssimo e o levará a ressignificar (não sem sofrimento e sacrifício) o amor, a santidade e o próprio sistema de crenças. Se a trajetória desses dois filhos de Mariinha e Julinho dos Pardieiros ganha contornos de um fado bíblico, é justamente o lado da sacralização que terá de ser despido, para que o amor encontre caminho.

Devido ao ponto de vista da narração, bem como a tudo que Felicíssimo revela dos acontecimentos, leitoras e leitores verão o mundano se sobrepor ao imaginário puramente miraculoso e cristão da vizinhança da família. Não que isso quebre o ar de encantamento: também será antagonizada, por exemplo, a vileza moralista de um homem que grita ofensas para Felicíssimo, enquanto este volta para casa, depois de se isolar como um eremita culpado. É uma sequência importante, e se Deus — mais uma vez, exatamente como as mães — “passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciem a presença, o regresso dos filhos”, Felicíssimo completará seu ciclo com essa volta à casa. Embora, no fim das contas, pareça que, nessa história voltada a mães, as grandes necessidades de resolução do protagonista sejam mesmo com o irmão e o pai.

Quem escreveu esse texto

Rafael Gallo

É escritor, autor de Dor fantasma (Biblioteca Azul), vencedor do prêmio José Saramago 2022.

Matéria publicada na edição impressa #83 em julho de 2024. Com o título “O evangelho segundo Valter Hugo Mãe”