Economia,

Insider por oito meses

Inéditas no Brasil, memórias de ex-ministro grego narram com pendor literário e sem maniqueísmo os bastidores da crise que protagonizou

13nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Poucos devem se lembrar de Yanis Varoufakis, o meteórico ministro da Fazenda da Grécia durante o primeiro semestre de 2015. Eu, que por dever de ofício acompanhei o longo desenrolar da agonia grega, confesso que só associava o nome de Varoufakis ao bonitão que arrancava suspiros nos “Diários da Dilma” da revista Piauí. As imagens que ficaram associadas a Varoufakis, a aparência de galã, os casacos de couro e a motocicleta não ajudam a dar credibilidade a um ministro da Fazenda. Sobretudo um ministro de um partido de esquerda, recém-chegado ao poder, que defendia a reestruturação, com perdão parcial, da dívida de um país que se endividou para financiar déficits fiscais insustentáveis, maquiou a sua contabilidade e já vinha de duas rolagens negociadas.

O último livro de Varoufakis, Adults in the Room: My Battle with the European and American Deep Establishment, que acaba de ser publicado em inglês, é um relato da sua breve passagem pela vida pública, mas que pode ser lido como um thriller político. Lá estão todos os elementos dos grandes romances. Cada uma das personagens — ou os adultos na sala, segundo Christine Lagarde, a número um do Fundo Monetário Internacional (FMI), de quem Varoufakis tomou emprestada a expressão para dar nome ao livro — está convencida de que age da melhor forma possível, mas o conjunto de suas ações leva inexoravelmente a um desastre de grandes proporções. Essa é a dinâmica das tragédias de Sófocles e Shakespeare, observa o autor no prefácio.

Segundo Varoufakis, as personagens se dividem entre banais e fascinantes. Enquanto as banais preenchem planilhas segundo as instruções que lhes são passadas, seus superiores, sejam políticos como o ministro alemão Wolfgang Schäuble, ou tecnocratas como Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu, têm consciência sobre seu papel no desenrolar do drama. Justamente porque têm capacidade de reflexão sobre seu papel e de dialogar consigo mesmos, são fascinantes prisioneiros de uma trama impessoal e implacável. 

Apesar de diretamente envolvido, Varoufakis procura apresentar a ação e seus atores sob o olhar desengajado do narrador das tragédias clássicas. Não há bons nem maus, apenas homens e mulheres que, pautados pela combinação do sentido de dever na vida pública e os mais comezinhos sentimentos humanos, como a covardia, a vaidade e a ambição, são atropelados pelas consequências inesperadas de suas ações.

O livro é um relato com pretensão de se manter fiel ao ocorrido. Numa nota de abertura, Varoufakis afirma saber da importância da fidelidade ao que foi dito, por quem, para quem e em que circunstâncias, num livro que se propõe a ser um registro de sua passagem pela vida pública. Diz ter procurado reproduzir os diálogos e fatos de modo fidedigno.

‘Yanis, você cometeu um grande equívoco’, diz Larry Summers. Ele pergunta: ‘E que equívoco foi esse?’. Summers responde: ‘Você venceu a eleição!’

Para isso, usou suas notas tomadas à época e, sempre que possível, as gravações oficiais das reuniões, assim como as feitas com o seu celular. A única quebra da ordem cronológica dos fatos é para, na introdução, contar seu encontro com Larry Summers, no bar de um hotel, tarde numa noite de primavera em Washington, D.C. 

Ao se aproximar da mesa onde estava Summers, só o reflexo de seu copo de uísque cortava o lusco-fusco do ambiente. Enquanto Varoufakis se deixava afundar no sofá, exausto depois de mais de quinze horas de discussões na sede do FMI, a alguns quarteirões dali, Summers saudou-o com um aceno, retornou o olhar para o uísque e, em seguida, num tom ainda mais soturno do que o seu habitual, lhe disse: “Yanis, você cometeu um grande equívoco”. Varoufakis, que esperava ouvir do poderoso e experiente ex-secretário do Tesouro americano alguma orientação para a condução das suas negociações, conta que a penumbra do bar deu uma conotação ainda mais tenebrosa à frase escolhida por Summers para abrir a conversa. Esforçando-se para parecer impassível, Varoufakis pergunta, “E que equívoco foi esse?”.  Summers responde: “Você venceu a eleição!”. 

O encontro se deu em abril de 2015. Seis meses antes, Varoufakis era professor na Universidade do Texas, em Austin, num período de licença de sua cátedra de economia na Universidade de Atenas. Como e por que, em tão pouco tempo, Varoufakis voltou ao seu país, elegeu-se o deputado mais votado pelo partido de oposição, o Syriza, e assumiu o Ministério da Fazenda no governo do primeiro-ministro Alexis Tsipras, é parte do fascínio da leitura.

Ao fim da conversa, antes de se despedirem,  Summers fixa os olhos em Varoufakis e lhe faz uma pergunta: “Existem dois tipos de homens públicos, os outsiders e os insiders. Um outsider se reserva o direito de dizer o que pensa, mas não é levado a sério pelos que decidem. Já um insider jamais revela o que se discute entre insiders, em compensação, tem acesso e influência sobre os acontecimentos. Em qual dos dois tipos você se enquadra?”. Varoufakis responde que, por temperamento, é um outsider, mas que estaria disposto a agir como insider, se preciso, para tirar a Grécia da armadilha em que se encontrava. E prossegue dizendo que, caso não seja possível, não teria escrúpulos para denunciar os insiders e voltar a seu ambiente natural. 

A resposta, com certeza, deixou claro para Summers quem era Varoufakis. Pode-se ser professor-visitante, mas não é possível ser insider-visitante. Varoufakis, que reconhece em Summers um aliado, não ideológico, mas intelectual, um crítico da forma como os europeus conduziram a crise grega, conta ter percebido que sua resposta incomodou a Summers. Ele teria preferido deixar o bar do hotel, naquela noite, acreditando que Varoufakis tivesse realmente interesse em se tornar um insider

Adults in the Room é testemunho definitivo de que Varoufakis nunca poderia ser um insider. Trata-se de uma excepcional reportagem sobre os bastidores do poder que só um outsider, transformado pelas circunstâncias nesse improvável oximoro, um insider-visitante, poderia escrever.

O fato de ser escrito por outsider que tem acesso ao universo dos insiders é apenas parte do que faz o livro tão interessante. Varoufakis é um economista competente. Estudou na Inglaterra, formou-se em matemática, com pós-graduação em estatística na Universidade de Birmingham, e doutorou-se em economia na Universidade de Essex, onde passou a dar aulas. Sua proposta para um sistema monetário paralelo, puramente digital, a ser adotado caso a Grécia fosse pressionada a deixar o sistema do Euro, demonstra imaginação e uma sofisticada compreensão do sistema financeiro e monetário contemporâneo, pouco comuns entre seus pares. Sua familiaridade com a literatura e a filosofia, que ficam evidentes na leitura do livro, também não é comum no deserto de especialistas em que se transformou a economia. 

Sensibilidade

O que torna Adults in the Room uma leitura tão fascinante é a capacidade que tem Varoufakis de adotar um distanciamento crítico, um olhar de observador desengajado, ao relatar um drama do qual ele havia se tornado, ainda que temporariamente, personagem central e profundamente engajado. Deixando claro suas posições ideológicas, Varoufakis não toma automaticamente partido. Demonstra grande sensibilidade para entender a psicologia e as razões, certas ou erradas, de todos os envolvidos. 

Sua proposta de um sistema monetário paralelo digital, a ser adotado caso a Grécia deixasse o Euro, demonstra imaginação e sofisticada compreensão do sistema financeiro

Embora o livro não tenha a pretensão de defender uma tese específica ou de teorizar sobre o mundo contemporâneo, após sua leitura fica ainda mais claro o absurdo do que foi imposto à Grécia, pela troika, formada pela União Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. Termina-se a leitura também com a impressão de melhor compreender a crise por que passam o liberalismo e a democracia representativa contemporânea. Seus valores e seus discursos já não correspondem à prática. 

Os políticos eleitos já não governam. Como disse um primeiro-ministro inglês, “we are still in office, but no longer in power” — estamos ainda a postos, porém não mais no poder. 

O verdadeiro poder é exercido por uma tecnoburocracia supranacional impessoal, ela mesma refém de interesses econômico-financeiros que, se contrariados, ameaçam a estabilidade econômica mundial. A mídia, em troca do que lhe parece ser acesso à informação do universo dos insiders, é flagrantemente manipulada. 

Como afirma Varoufakis no prefácio, a crise do liberalismo democrático, o ressurgimento do populismo e do nacionalismo xenofóbico, as derrotas do projeto democrático ocidental, como a crise do euro, o Brexit e a eleição de Trump, causam menos perplexidade, depois de um tour pelo universo dos insiders. Adults in the Room é uma oportunidade para fazer esse tour, através da perspectiva de um sofisticado outsider, que foi devidamente derrotado e expelido de sua quixotesca tentativa de influenciar os acontecimentos.  

Quem escreveu esse texto

André Lara Resende

Economista, escreveu Juros, moeda e ortodoxia (Portfolio Penguin).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.