Economia,

Inovação diluída na tradição

Francisco Luna e Herbert Klein organizam um gigantesco banco de dados sobre a evolução de São Paulo, mas enquadram tudo numa moldura arcaica

01maio2019 | Edição #22 mai.2019

Francisco Vidal Luna é um pioneiro. Quando começou a montar bancos de dados históricos, o trabalho era estrênuo. Empregava os intervalos disponíveis para garimpar censos em paróquias ou arquivos. Quando tinha sorte, copiava microfilmes; muitas vezes as folhas eram fotografadas. Passar os dados ao ambiente informático exigia conhecimento de paleografia e muita paciência, com horas de trabalho preenchendo campos a lápis. Tinha a sorte do acesso a computadores na universidade — os únicos possíveis antes da era dos PCs. O resultado vinha impresso em milhares de folhas de papel. As anotações eram feitas a mão e a escrita em máquina de escrever.

Esse trabalho continuava o de uma estirpe cuja história merece ser contada. O grande historiador da economia no século 20, o francês Fernand Braudel, foi um dos que vieram dar aula para as primeiras turmas da usp. Entre as pessoas que formou, a predileta foi Alice Canabrava. Sua tese sobre o comércio de contrabando no Rio da Prata na época colonial era muito inovadora na historiografia brasileira. Professora titular na Faculdade de Economia, ela formou pesquisadores como Fernando Henrique Cardoso (foi seu assistente até ser convocado para o primeiro trabalho importante, “Cor e mobilidade social em Florianópolis”) e Antônio Delfim Netto (o teor histórico de sua tese sobre o café mostra a qualidade da formação que recebeu).

Luna conviveu com Alice Canabrava e desenvolveu a mesma disciplina da pesquisa rigorosa e incessante e da comprovação documental. Teve a clarividência de apostar na informática. Suas bases de dados foram ficando cada vez maiores, ao mesmo tempo que o esforço para computar dados diminuía exponencialmente e a qualidade do acesso e tratamento aumentava mais exponencialmente ainda.

Começou uma colheita muito proveitosa do que fora arduamente plantado. Muito antes que se tornasse regra, Luna pôde fazer publicações mostrando uma nova realidade histórica brasileira — em especial naquilo que buscou a princípio, a escravidão e a demografia racial. O impressionismo ensaístico foi substituído pela exposição clara e por argumentos que se fundavam nos dados.

A parceria com Herbert S. Klein acelerou ainda mais a capacidade produtiva. A série de livros dos dois permitiu que os brasileiros tivessem uma sólida e renovada visão de seu passado, especialmente o passado colonial do século 18 e do início do Império — pois nesse período se concentram os censos que forneceram os dados para os bancos pioneiros de Luna.

A obra tem uma bibliografia vastíssima e uma quantidade de dados estonteante

A História econômica e social do estado de São Paulo, 1850-1950 é um projeto bem mais amplo. Como bem dizem os autores, o problema é outro: “Se em 1850 esse dinamismo extraordinário não se revelava, em 1950 já estava claro que São Paulo era o mais importante centro econômico e populacional do país”.  Trata-se, portanto, de fazer o retrato de uma transformação. Nesse retrato já não conta tanto a vantagem dos bancos de dados próprios que sustentam as publicações anteriores. O desafio que a dupla enfrenta agora é de outra ordem: empregar recursos conceituais mais amplos — pois não se explica uma transformação sem um nexo de significado entre o antes e o depois.

A erudição da dupla deu conta de enfrentar a tarefa a seu modo — produzindo uma obra individual com tratamento de uma bibliografia vastíssima e de uma quantidade de dados tabelados e processados estonteante. Apenas essas referências já tornam a obra relevante: a consulta a ela será sempre de alta qualidade, levando a estudos e fontes de dados para praticamente qualquer tema da história paulista do período.

Para a empreitada foi desenhada uma estrutura narrativa peculiar. Em vez de seguir uma única cronologia e apresentar os argumentos concatenados pelo tempo, a dupla preferiu fatiar por temas. São oito, de modo que o leitor é levado a fazer idas e vindas no tempo. Primeiro a agricultura no Império, depois o governo provincial. Mais seis idas e vindas na República, conhecendo a evolução de cada setor. Isso facilita a apresentação dos dados e da bibliografia.

Na via inversa, o procedimento torna a compreensão do tema geral — uma história secular de transformação — muito mais difícil. O leitor tem de se virar sozinho para ir fazendo as associações que permitem ligar a evolução de um setor à de outro, até formar sua impressão do processo global. Não é tarefa singela.

Em meu caso particular a leitura teve um forte viés. Explicito-o claramente: sou autor de um livro sobre o período (Júlio Mesquita e seu tempo,  Mameluco, 2015). Como cultor do gênero biográfico, escolhi Júlio Mesquita (1862-1927) como ilustração simbólica do mesmo tema de transformação de que a dupla trata, mas com outra pegada: um filho de imigrantes analfabetos, abolicionista radical, que começa a ganhar a vida como empregado vivendo das letras num jornal, torna-se empresário industrial num setor de ponta na economia — e morre como se fosse tradicional, uma vez que dono de O Estado de S. Paulo. Admirador antigo da obra de Luna, tentei tratar o tema da gigantesca transformação paulista no período apresentando dados e argumentando sobre eles — deixando de lado as interpretações tradicionais que realçavam a permanência e focando no novo, na mudança.

Expectativas frustradas

Assim alimentei grandes expectativas antes de ler a primeira linha do livro. Esperava a mesma espécie de renovação do restante da obra dos autores, com os dados dos bancos e as tabelas fundando argumentos que trouxessem uma nova luz, levando o conhecimento para mais longe das interpretações tradicionais.

A expectativa começou a baixar já na página 35, quando li: “Para entender a história da província na segunda metade do século 19 é essencial compreender a dinâmica da economia cafeeira”. Pensei: “Senta que lá vem o modelão agrário-exportador”.

Veio. Duas páginas depois os autores decretam o seccionamento da produção agrícola entre “produtos cultivados para o mercado interno” e “café e açúcar”. Dão medidas: dois terços para os primeiros e um terço para o restante. Parece o dado explicando a economia, mas não é bem assim. Os próprios autores já mostram, páginas depois, que uma boa parte da produção de açúcar se destinava ao mercado interno. Se a preocupação fosse apenas o dado, uma parte considerável da produção açucareira deveria ser alocada como produção interna. Mas nem se cogita a hipótese, pois a separação cumpre outra função, que não é numérica, mas analítica: projetar nos “setores exportadores” o todo da dinâmica econômica — e, inversamente, retirar do setor interno qualquer dinamismo. A separação cumpre uma função lógica, insere-se numa teoria. Não tem alguma base empírica.

Já nesse momento pensei: “Vão enterrar as tropas”. E, de fato, o fazem. Nem mesmo o dado numérico de que os impostos sobre tropeiros eram a base do orçamento no período inicial (quase metade das receitas vinha da cobrança de pedágio das mulas e impostos sobre a feira de Sorocaba) faz a dupla parar para pensar na atividade como parte relevante da produção. As referências às tropas, quando aparecem, são de mulas dispersas em fazendas, como “parte” do setor exportador.

Minha má sensação aumentou muito ao chegar na página 96. Falando do governo provincial, afirma sobre seus gastos no último quarto do século 19: “A prioridade passou a ser o financiamento das estradas de ferro, e os gastos com garantia de juros às ferrovias tornaram-se uma categoria significativa e crescente nas despesas”. Levei a impressão até a página 348, quando li: “O estado teve um papel importantíssimo, inclusive como proprietário de ferrovias. Não só garantiu retorno ao capital privado investido, mas também, como as ferrovias apresentavam déficits constantes, ao longo do tempo o governo começou a assumir o controle das próprias companhias”. Duas páginas antes tinha lido: “Era uma história de concessões entregues a indivíduos ricos como presente político”.

Fiquei frustrado ao ver os muitos dados novos serem sacrificados no altar das interpretações mortas

O leitor vai me permitir uma digressão sobre tropas e estradas de ferro baseada em meu livro. Nada do que segue abaixo aparece na obra da dupla, mas o relato permite aquilatar o tamanho do que foi colocado para baixo do tapete a golpes de puro preconceito.

Até 1867 o negócio nacional de tropas era controlado por paulistas. Eles traziam algo como 15 mil mulas por ano do Rio Grande do Sul. Esses animais eram vendidos na feira de Sorocaba e redistribuídos para todo o país. Milhares de tropeiros eram empresários de logística: levavam e traziam cargas. Numa economia de baixa monetização, cobravam fretes à vista. Faziam também operações de compra e venda, tomando riscos. Os mais ricos e bem-sucedidos se tornavam financiadores e dividiam riscos com os demais.

Esses financiadores eram grandes empresários. O paulista mais rico na metade do século 19 era Antonio da Silva Prado, barão de Iguape, tropeiro de longo curso quando jovem e cobrador de impostos em Sorocaba. Instalado numa casa-armazém de um quarteirão em São Paulo, nunca mais saiu da capital nem teve nenhuma fazenda. Fez toda a fortuna com tropas.

Ele e seus colegas tinham informações muito precisas sobre movimento de mercadorias e fretes Brasil adentro. Tais informações foram passadas, via marquês de Monte Alegre, para Irineu Evangelista de Souza, o barão de Mauá. Com elas, os dois obtiveram uma concessão ferroviária. Mauá empregou os bons dados para montar um projeto de financiamento, arrancou dinheiro de grandes investidores ingleses e começou a obra da Santos Jundiaí. Era acionista, mas também empreiteiro. Nessa última posição, tomou um cano de 2 milhões de libras esterlinas de seus parceiros ingleses, mas deixou a ferrovia pronta.

Os caloteiros eram gente dura. Tendo um monopólio, foram tentar colocar de joelhos o presidente da província, Saldanha Marinho. Disseram que iam fazer menos que o prometido e cobrar muito mais para continuar as obras. Com ajuda de Mauá, Saldanha Marinho peitou o blefe. Exigiu uma carta deles dizendo que desistiam da concessão para avançar com a linha se não tivessem os favores que queriam. A carta saiu. Saldanha Marinho cassou a concessão. Passou o caso para a Assembleia provincial, que aprovou lei local para novas concessões.

Para resumir o lado institucional: a ferrovia era uma concessão monopolística dada pelo governo nacional. Permitia ao concessionário entrar com grandes vantagens no mercado de fretes concorrencial dos tropeiros. O movimento do presidente de província trocou o agente concedente, que passou a ser a Assembleia local, e manteve a estrutura de uma concessão baseada em garantia de juros para o capital empregado. A Assembleia deu logo cinco concessões. Cada uma delas para uma sociedade anônima a ser organizada. Muitos tropeiros sabiam fazer contas precisas das receitas que podiam obter caso investissem no negócio. As cinco empresas organizadas juntaram um capital de 29,1 mil contos. Dinheiro privado. Os investidores tiveram de brigar com o governo imperial, que tentou barrar a concessão e controle legal do processo na esfera local. Mas ganharam e foram às obras. 

Pergunta relevante: 29,1 mil contos era muito dinheiro? Considerando que o orçamento paulista de 1874 foi de 1,9 mil contos, era quinze vezes total dos gastos do governo. Outra boa pergunta: onde estava este dinheiro todo, numa economia na qual havia apenas uma agência bancária? As listas dos acionistas mostravam financiadores de tropas, com o barão de Iguape à frente, encabeçando todas as subscrições.

Das tropas às ferrovias

Para entender o processo: empresários privados de transporte estavam transferindo seus capitais das mulas 1.0 para o trem 2.0. Deixavam a posição concorrencial se associando como acionistas de uma concessão monopolística de rota. E podiam fazer isso porque o governo provincial fizera uma lei que lhes deu acesso ao negócio. Uns entraram com muito dinheiro para investir, outros com um pedaço de papel de garantia. Mudaram as relações institucionais entre empresários de transporte locais e o governo.

Os resultados da mudança aparecem como dados na história real. As ferrovias se tornaram de longe as maiores empresas privadas de São Paulo. Todas foram adiante, quase todas lucrando muito. Mudaram radicalmente o cenário da logística e tornaram muito mais competitiva a economia. Negócios de todo tipo prosperaram.

O governo provincial lucrou ainda mais que os acionistas: o imposto sobre os itens transportados nas ferrovias se tornou a maior fonte de receita, com um múltiplo alto sobre os antigos pedágios nas barreiras. Os pagamentos de juros foram limitados a um período curto e bem mais baixos que as receitas novas. A ferrovia citada pela dupla foi para o controle do governo três décadas depois de sua criação — e não por causa de prejuízos.

Tudo isso foi mudança, tema central do trabalho dos autores. E a mudança aconteceu duas décadas antes que o café das áreas nas quais passavam as ferrovias formasse o maior volume da produção paulista. Ferrovias importantes nem sequer cruzavam áreas cafeeiras. Mas todo esse movimento positivo de renovação é enquadrado pelos autores da seguinte forma: “A lógica de sua [das ferrovias] implementação era reduzir os custos do café”.

O exemplo faz entender que o argumento é para lá de duvidoso quando confrontado com os dados — muitos dos quais expostos no próprio livro. A adesão à tradição em detrimento da mudança não se limita a escamotear a análise da dinâmica dos setores internos. Na passagem do econômico para o social a coisa fica ainda pior.

Na definição dos autores a elite privada se dividiria em “barões de café e empreendedores estrangeiros”, ambos dependendo de “um governo capaz de dar início às ferrovias”. Seria a tal “burguesia cafeeira”, assim definida na página 124: “Seus interesses não se limitavam à produção de café; abrangiam também o transporte ferroviário, atividades comerciais, o comércio externo, serviços públicos, bancos e produção industrial”.

Trata-se evidentemente de uma volta atrás conceitual. Em vez de explicar a modernização pela multiplicação das possibilidades e figuras na atividade empresarial, os autores preferem unir tudo num conceito-fetiche, único modo de assegurar o surrado (e não comprovado empiricamente) argumento central da dinâmica dependente do café. Só assim empresários ferroviários, industriais, banqueiros, agentes do comércio externo — as próprias figuras da mudança — passam a “depender” das exportações.

Enfim, fiquei frustrado ao ver os muitos dados novos serem sacrificados no altar das interpretações mortas. Com isso, toda a qualidade das novas referências se dilui numa análise que tem muito mais de tradição que de mudança.  

Quem escreveu esse texto

Jorge Caldeira

Escritor e cientista político, escreveu Mauá — Empresário do Império (Companhia das Letras) e História da riqueza no Brasil (Estação Brasil).

Matéria publicada na edição impressa #22 mai.2019 em abril de 2019.