Ciências Sociais, Economia,

Esperança visionária

Mangabeira Unger professa a fé na ação política para a realização do potencial do país

22nov2018 | Edição #14 ago.2018

Os pontos de vista e os focos normativos variam ao infinito, mas toda reflexão crítica sobre a vida em sociedade envolve uma definição em torno de dois parâmetros essenciais. O primeiro é a extensão do hiato entre o mundo como ele existe e o mundo como ele poderia e deveria ser: o fosso entre o real e o ideal. E o segundo é o grau da fé depositada no poder e na capacidade de fazer a mudança acontecer: o eixo que vai do voluntarismo extremo, no qual tudo é questão de vontade, ao absoluto fatalismo de que as coisas são como são e não há nada que se possa fazer para mudá-las.

Na matriz definida pelas combinações possíveis desses dois parâmetros, a filosofia política de Roberto Mangabeira Unger tem endereço certo: o quadrante da esperança visionária. Um espaço conceitual definido pela percepção de um hiato absurdo entre a realidade e o potencial humano aliada a uma não menos incisiva fé na capacidade de impulsionar a mudança por meio da persuasão e da ação política. A imaginação profética como guia e serva da paixão transformadora.

Depois do colonialismo mental é um livro de combate. Embora pretensamente dividido em duas partes — “Repensar o Brasil” e “Reorganizar o Brasil” —, seria mais certo descrevê-lo como dois livros em um. Enquanto o primeiro deles oferece um ensaio-síntese de fôlego, inédito, sobre o potencial brasileiro e os caminhos da mudança, o outro reúne 118 artigos publicados na imprensa entre 1998 e 2007 e divididos em sete blocos temáticos. O prefácio assinado por Caetano Veloso situa a voz dissonante de Mangabeira fora e além do coro da esquerda convencional e frisa sua afinidade com vertentes da melhor e mais vigorosa cultura popular brasileira.

 A edição, lamento dizer, deixa a desejar. Os temas tratados vão e voltam, com mínimas variações, qual serpentes ao longo do texto; o repensar da luta ideológica e o reorganizar da vida pública estão igualmente distribuídos nas duas metades do livro (ao contrário do que daria a entender a divisão em duas partes); e as repetições textuais, não só de frases e fórmulas mas, por vezes, de itemizações e parágrafos inteiros, são incontáveis (falhas de revisão, gramática e ortografia, idem). Difícil também entender a decisão editorial de sonegar a apresentação da estrutura do livro e da origem dos artigos coletados na segunda parte (63% do volume) até a página 24. Faltou cuidado e faltou transparência.

Nada disso, contudo, deveria ofuscar o valor da contribuição intelectual de Mangabeira para o debate brasileiro. O diagnóstico da condição de “colonialismo mental” das nossas elites dirigentes e acadêmicas, presas fáceis da mania mimética e da “mentalidade de rendição”, é certeiro, assim como é bem-vindo o chamado ao exercício da imaginação como “antidestino” na construção de instituições e políticas capazes de afirmar de forma experimental e incremental, sem a charlatanice da “revolução”, uma identidade e caminho originais brasileiros no desconcerto das nações — os “países ricos” que desde sempre teimamos em macaquear. “Temos de passar pela desilusão da desilusão e nos fazer profetas de nossa própria grandeza.”

Existe um sonho brasileiro? Podemos construir, apesar de tudo, uma civilização que reflita os nossos valores e que traga proveito e alento à humanidade? A resposta de Mangabeira é uma contundente (e por vezes arrebatadora, como na pequena obra-prima que é o artigo “Uma vida humana”) profissão de fé na grandeza alcançável de nosso futuro comum.

Em vez de resignarmo-nos à humanização de arranjos socioeconômicos injustos, devemos mirar a divinização possível da existência humana

Em vez de resignarmo-nos à humanização de arranjos socioeconômicos injustos, como temos timidamente tentado nas últimas décadas, devemos mirar a divinização possível da existência humana. No caso particular do Brasil, isso significa reconhecer o traço definidor e enigma da vida nacional: a vitalidade. A vibração humana que se manifesta entre nós “na coexistência de uma energia imensa, difusa, frustrada, quase cega, com uma doçura, um calor humano, que sobrevive, misteriosamente, aos traumas da vida cotidiana no Brasil”. O objetivo maior, sustenta Mangabeira, é “dar braços, asas e olhos à vitalidade brasileira”; é “transformar vitalidade em ação fecunda”; é “ver a pujança casada com a ternura”. Apurar a forma da convivência sem perder o fogo dos afetos.

Mas a tônica dominante do livro não é o ideal remoto da nação sonhada, estrela-guia do bom combate. É a luta pelo presente. É a realização, por meio da política, do que ele denomina possível adjacente, ou seja, “o caminho definido ao mesmo tempo pela escolha da direção e pela identificação dos primeiros passos para trilhá-lo”. O elenco de propostas é vasto: algumas são controversas, merecedoras de debate, e outras, a meu ver, francamente equivocadas. O sentido geral do programa, não obstante, e muito do que ele propõe me parece correto no essencial.

Mudança

Por onde ir? O eixo da proposta contempla três vetores de mudança: 1) Produtivismo includente: a qualificação e ampliação das oportunidades produtivas, creditícias e educacionais por meio da democratização do mercado rumo a formas inclusivas de economia do conhecimento ao invés da massificação do consumo; 2) Educação capacitadora: revolução pedagógica visando a construção de maneira de ensinar e aprender que capacite para a vida prática e aproveite os pendores e talentos criativos dos jovens em vez de guerrear com eles; e 3) democracia de alta energia: o reordenamento da democracia representativa por meio de inovações institucionais que fortaleçam a vida partidária, reduzam o poder do dinheiro na política, aumentem o engajamento popular e reequilibrem o pacto federativo.

O tripé de Mangabeira fica em pé: traduz a visão em projeto, tem coerência interna e acerta no rumo que devemos seguir, ainda que omisso em relação a tema vital do nosso futuro que é a questão da sustentabilidade ambiental. O demônio, porém, mora no desdobramento dos vetores em planos de ação. “Debate programático sério”, como ele admite, “é debate complicado”.

Em alguns casos, o detalhamento dá substância e reforça a pertinência do caminho proposto. O vetor da educação capacitadora, em particular, suscita análises, ideias e sugestões de extrema valia para todos aqueles que não se conformam em ver a educação brasileira rebaixada a uma farsa em que alguns fingem que ensinam, outros fingem que aprendem, e tudo termina em diploma.

O mesmo se aplica ao diagnóstico e propostas de correção da disfunção institucional de um mercado de trabalho que condena metade dos brasileiros a viver de biscates, na informalidade ou pior, sem proteção e direitos. Sem voz. O Brasil que asfixia talentos e “fervilha de energia humana frustrada”.

Em outros casos, contudo, o desdobrar programático faz disparar os alarmes. Cito dois exemplos. Ao propor uma democracia de alta energia, Mangabeira defende, entre outras coisas, “a aceleração do passo da política”: os impasses entre poderes do Estado, frequentes em nosso presidencialismo, seriam prontamente resolvidos e superados de um modo que “eleve o nível de mobilização política na sociedade, como por meio de eleições antecipadas ou plebiscitos e referendos abrangentes”. A natureza dos impasses e as condições nas quais se recorreria à manifestação direta do eleitorado para superá-los não são especificadas.

Nos moldes em que está feita, e tendo em vista o perfil dos políticos no Legislativo e Executivo, a proposta soa como receita infalível para abrir uma caixa de Pandora de crises, instabilidade e paralisia. A ideia de institucionalizar uma “dinamização da vida pública por meio da dialética de conflitos que se superam sucessivamente” não passa, creio eu, de singela abstração livresca. Pueril no papel, ruinosa na prática. É justamente porque tem freios que um automóvel pode mover-se com maior rapidez.

Tempos sombrios, visões fulgurantes. O amor das pessoas comuns, sentimento de raiz cristã, anima o inconformismo radical de Mangabeira

Outro exemplo é o aparente desapreço pela estabilidade macroeconômica e pela confiança do sistema financeiro. Isso transparece de forma inequívoca na crítica radical de Mangabeira ao primeiro governo Lula — “o projeto tucano-petista é um só, a diferença é que o PT no poder representa a versão fossilizada e medrosa da causa comum” — por conta da sua adesão à ortodoxia na condução da economia e da suposta primazia dada à conquista da confiança financeira em detrimento da democratização do mercado pelo produtivismo includente. Todo o ciclo tucano-petista, em sua avaliação, praticamente resumiu-se a uma combinação de financismo, para ganhar a bênção e engordar a conta dos ricos, e de assistencialismo, para aliviar com migalhas o sofrimento dos pobres.

Discordo dessa avaliação. A estabilidade macro e o respeito a contratos são pré-requisitos indispensáveis para qualquer projeto consequente de nação. Transigir nesse ponto é arriscar-se a pôr tudo a perder. O primeiro governo Lula, assim como Mandela na África do Sul, entendeu isso e trabalhou de forma competente na reversão de um quadro ameaçador de descontrole que sua própria eleição exacerbou (o mesmo não pode ser dito do segundo Lula ou, ainda menos, de Dilma). O modo como se deu a alternância de poder entre FHC e Lula foi o mais belo momento da redemocratização brasileira; a seriedade da política econômica no primeiro mandato abriu espaço para as políticas de inclusão que, embora limitadas, melhoraram a vida de milhões. O desastre foi o que veio a seguir. 

Mas no afã de repudiar a ortodoxia e os excessos financistas, Mangabeira faz bravata desnecessária e equivoca-se ao defender que a política econômica deve “tensionar os mercados financeiros (evitando ao máximo ruptura dos contratos) e preparar-se para controlar movimentos de capital quando for necessário controlá-los”. É difícil saber o que ele entende por “evitando ao máximo” no parêntese ou “quando for necessário” em seguida, mas hostilizar e menosprezar a preservação da confiança do mundo financeiro não levará ao objetivo pretendido. A estabilidade macro, é certo, não é um fim em si mesmo, mas sem ela viveremos em eterna crise e não sairemos do atoleiro. A economia, como a saúde, tem o péssimo hábito de tiranizar aqueles que abusam dela. A “nova matriz” dilmista ilustra o engano. Cedo ou tarde, a realidade se impõe.

Tempos sombrios, visões fulgurantes. O amor das pessoas comuns, sentimento de raiz cristã, anima o inconformismo radical de Mangabeira. O mundo como ele existe está brutalmente aquém do mundo que há de ser. Sua filosofia política de alta energia une a reflexão sobre os fins últimos e o mais elevado ideal alcançável da vida humana com a discussão dos meios e medidas práticas mais imediatos do possível adjacente.

A imensa força e os elos frágeis do seu pensamento bebem da mesma fonte. Mangabeira investe suas ideias de um ardor quase religioso — eis a origem da potência e da esperança visionária que ele inspira e infunde. Isso engrandece o debate público brasileiro. Nada grandioso sem paixão.

Mas o fogo tem seu preço. O entusiasmo e a fé inquebrantável na correção de sua pregação e propostas não raro faz com que ele transforme a paixão em critério de verdade, como se a força e intensidade de uma crença bastassem para garantir a sua validade prática ou epistêmica — eis a fonte do que há de frágil em seu ideário. O passo fatal é confundir calor com luz. Ao ler e debater as ideias do profeta-realizador Mangabeira devemos ter presente o alerta do epigrama de Goethe: “Existe uma reflexão entusiástica que é do maior valor, contanto que a pessoa não se deixe arrebatar por ela”. A coragem ardente das nossas convicções, porém filtrada pelo cuidado em saber distanciar-se delas e pela coragem fria de atacar e rever as próprias convicções. A exuberância baiana temperada pela cautela mineira.  

Quem escreveu esse texto

Eduardo Giannetti da Fonseca

Publicou Elogio do vira-lata e outros ensaios (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #14 ago.2018 em agosto de 2018.