Economia,

As origens da crise atual

Ex-presidente do Banco Central mostra que, desde 1930, os sucessivos governos emitem moeda de forma abusiva e irresponsável

13nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

A história monetária de um país é um assunto monótono para pessoas comuns, que não tenham o questionável senso de curiosidade dos economistas. O mesmo vale para as leis que institucionalizam a moeda, tão queridas dos advogados. Daí se intui que Gustavo Franco possui mérito dobrado ao entreter todos os seus potenciais leitores ao longo de 850 páginas de uma ambiciosa história monetária do Brasil. Ao compreendermos conjuntamente a moeda e a lei, ultrapassamos ambas.

O livro só é tão grande porque o enredo é riquíssimo, e repleto de reviravoltas impossíveis de se imaginar na ficção. Começa em 1933, com a criação do papel-moeda por aqui. E se despede em 2013, numa véspera causal dos efeitos econômicos atuais.

Dentro desse recorte cronológico, o Brasil experimentou — ou foi experimentado por — vários padrões monetários. Indeciso entre cruzeiros, cruzados e reais, o país fez e desfez oito moedas numa janela de 52 anos. Ninguém há de nos culpar por lapsos criativos. Ao mesmo tempo de tantas mudanças, alguma coisa perdurou, de vícios a virtudes. O autor, um dos mentores do Plano Real, se espanta ainda ao lembrar que enfrentou dezenas de normas de 1933 que careciam de urgente atualização seis décadas depois, em 1994.

Os ovos da serpente dessa herança longínqua são personificados por Getúlio Vargas e Oswaldo Aranha, então ministro da Fazenda. Este deu um pontapé ambíguo na moeda nacional, publicando três leis encomendadas por Vargas: a da usura, a do controle cambial e a do curso forçado, que concedia ao Estado o poder mágico de imprimir dinheiro. As duas primeiras leis tinham por objetivo reservar mercado para a terceira, à medida que limitavam os juros privados e a conversão entre moedas. Dificultavam assim qualquer concorrência futura aos caprichos do monetarismo estatal.

Mas faltava ainda um quarto pilar, desde que fosse manco. Assim aprendemos com Franco que o maior feito de Aranha não estaria nas três leis que promulgou, mas sim numa quarta, que Getúlio preferiu omitir: nascemos sem Banco Central.

A rigor, o problema se tornou bem mais grave ao longo da história, partilhando a culpa com outros tantos governos intervencionistas. Fomos praticamente o último país do mundo a ter um Banco Central relevante. Mesmo em 1964, quando o BC foi criado, sobreviveu apenas três anos. Em 1967, Costa e Silva demitiu toda a diretoria e o transformou em mera alegoria.

Na década de 1970, o BC ficou subordinado ao governo federal. Inventamos a meia-entrada na cessão de crédito, dando a alguns poucos privilegiados o direito de pagar juros de compadrio. E modernizamos a correção monetária, tornando a moeda estável para poucos e depreciável para muitos. O governo selecionava a dedo seus amigos; quanto mais selecionava, maior o inimigo inflacionário.

A política monetária nasceu filha única no Brasil, sem contrapeso ao poder do Estado de abusar da fabricação de papel-moeda

Desde a origem da moeda nacional, predominou a crença na indisciplina fiscal e monetária como virtude — apenas mais um rompante de rebeldia macunaímica. Os trópicos utópicos desejavam fazer do nosso jeito; loucos eram os outros, com seus Bancos Centrais autônomos.

Se o leitor começa o livro interpretando este BC tardio como um pequeno detalhe cronológico, a esta altura já se convence de tamanho desequilíbrio. A política monetária nasceu filha única no Brasil, sem contrapeso ao poder do Estado de abusar da fabricação de papel-moeda.

Como ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco fica naturalmente à mercê das críticas de sobrevalorização da instituição. Contudo, há outras sobrevalorizações bem mais relevantes merecendo a atenção do leitor neste momento. Nos 15 anos anteriores ao Plano Real, o Brasil acumulou uma hiperinflação de 20.759.903.275.651%. De abril de 1980 a julho de 1994, sobrevivemos a 182 meses rodando com inflação de 16% ao mês. A maioria de nós já não lembra bem disso. Conforme o Censo de 2010, 120 milhões de pessoas (o equivalente a 61,5% da população) tinham menos de 15 anos em 1989.

Talvez alguns desses jovens hoje se perguntem se há algum motivo maior por trás da fauna e flora nas notas de real. Afinal, no mundo todo, o dinheiro é tradicionalmente cunhado junto à figura de reis e rainhas, cientistas e artistas. A moeda empresta valor ao ídolo nacional, que empresta valor à moeda, num círculo virtuoso.

Moeda única

Aqui no Brasil, testamos a tradição até o limite, para então abandoná-la pelo bem de nossos heróis, coitados. Carimbamos tantas vezes os rostos de Oswaldo Cruz, Heitor Villa-Lobos e Machado de Assis que corríamos o risco de desfigurá-los para sempre. À altura de 1994, ninguém mais queria dar a cara aos tapões inflacionários. Bichos e plantas não reclamam, resolvendo esta questão. Restavam outras, menos estéticas.

Com o Real, retomou-se o princípio de uma única moeda, estável para todos. Voltamos a seguir fórmulas internacionais bem-sucedidas, relaxando controles cambiais e conferindo maior responsabilidade ao orçamento público. Nas palavras canonizadas pelo Nobel de Economia Thomas Sargent, uma inflação alta e persistente é, a todo tempo e lugar, um fenômeno fiscal antes de ser monetário.

Aqui, Gustavo Franco poderia ter incorporado a hubris que puxaria sua vaidade como um dos formuladores do Real. Nota-se, obviamente, o orgulho no texto pelas conquistas do Plano. Porém, logo a seguir, vem também a honestidade quanto às lacunas econômicas e institucionais que perduram até a atualidade e se fizeram evidentes na crise dos últimos anos.

Hoje temos mais dos contrapesos institucionais que sempre faltaram para domar os impulsos intervencionistas, mas o espectro político de 2018 evidencia que não atingimos ainda um equilíbrio maduro. Governos irresponsáveis — de esquerda ou de direita — emitem moeda abusivamente, e hipertributam o pobre através da inflação. Essa história não muda. O que muda é só a moeda que se paga, e a lei que se cobra. 

Quem escreveu esse texto

Rodolfo Amstalden

Economista, é analista da Empiricus Research.

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.