Divulgação Científica,
Liberdade para pensar
Nova biografia exibe Diderot como filósofo ousado e experimental
01maio2019 | Edição #22 mai.2019Um dos muitos acertos da mais recente biografia de Diderot está no título: Diderot and the art of thinking freely, Diderot e a arte de pensar livremente. Com efeito, pensar livremente é uma arte, no sentido de um hábito adquirido e aprumado com o tempo, não de um talento espontâneo e natural que se exerce sem mais. Muitas vezes acontece de a livre expressão ser confundida com o pensamento livre, mas este último tem pouco ou nada a ver com a permissão, concedida pelo poder político, de se dizer o que se bem entender. O pensamento livre nem sequer implica a liberdade de pensar. Requer, sim, um rigor, aliado à capacidade de rever posições e à aptidão de transitar entre diferentes domínios da experiência.
A vida de Denis Diderot (1713-84) ilustra isso muito bem. Nascido em um período de relativa prosperidade e estabilidade política na França, desde cedo o jovem Diderot percebeu que as amarras à liberdade de pensamento e de expressão são muitas e se dão sob múltiplas formas, incluindo as mais respeitáveis possíveis, desde tradições e expectativas familiares até o capricho e o receio dos poderosos. Logo se deu conta, também, de que pensar livremente depende apenas da pessoa que pensa e de uma disposição a ser livre de preconceitos, dogmas e supostas certezas. Em um século repleto de espíritos livres, poucos o foram tão desabusadamente quanto Diderot. E o livro de Andrew Curran faz justiça a essa dimensão fundamental do filósofo, enciclopedista e escritor.
Fascínio pela natureza
O comprometimento do autor com a acessibilidade, fonte de omissões, é compensado com uma leitura reveladora de um dos principais escritos de Diderot: O sonho de D’Alembert, redigido em 1769 e publicado apenas no século seguinte. Nesse diálogo extraordinário, encontra-se a suma do pensamento maduro do filósofo, às voltas com uma questão: o conhecimento da natureza, que o fascinava pelo menos desde 1754, ano da publicação dos Pensamentos sobre a interpretação da natureza — obra que já no título indica que o problema do conhecimento terá um feitio especial, de interpretação, cujo modo privilegiado é a conjectura. Distanciando-se das certezas da matemática e da segurança oferecida pelas leis da física newtoniana — então o grande paradigma da ciência —, Diderot propõe uma aliança entre hipóteses especulativas, observação metódica e verificação experimental. Esses imperativos se encontram conjugados em raros indivíduos, dotados de um gênio que permite entrever fatos que a ciência, em seu uso rotineiro, não desconfia que existiriam. Segundo Diderot, tal exercício é especialmente recomendável para aqueles objetos cujo conhecimento é mais incerto e obscuro: os seres vivos e suas diferentes formas de organização.
Em um século repleto de espíritos livres, poucos o foram tão desabusadamente quanto o filósofo, enciclopedista e escritor Denis Diderot
Curran não dá muita atenção aos Pensamentos sobre a interpretação da natureza, talvez por terem sido publicados numa época em que Diderot já enfrentava os percalços do trabalho editorial da Enciclopédia, em uma série de episódios que interessam de perto ao seu biógrafo. Seja como for, o capítulo dedicado ao Sonho de D’Alembert — intitulado, provocativamente, “On the origin of species” (Sobre a origem das espécies) — pressupõe nas entrelinhas a tese central dos Pensamentos e mostra com precisão a aplicação do método conjectural a uma disciplina — a filosofia da natureza — que dá base à história natural e fornece a ela princípios capazes de nortear suas investigações. Curran parece particularmente à vontade na exposição dos meandros que compõem os diálogos do Sonho, dos quais participam personagens fictícios inspirados em pessoas reais. Além de D’Alembert, ora acordado, ora delirando, ora dormindo, o próprio Diderot, o médico Bordeu, seu amigo, e Julie de l’Épinasse, amiga de D’Alembert. Concentram-se nas falas de Julie, na última parte do livro, as grandes inflexões teóricas do diálogo. É na única voz feminina que os segredos da natureza começam a ser adivinhados.
Curran analisa o enredo com clareza e lucidez, e não esconde seu deleite com os episódios mais picantes — ousados em sentido metafísico e também sexual. No primeiro deles, Diderot, conversando com D’Alembert, mostra que ele, um dos principais geômetras da Europa (geômetra era quase sinônimo do que hoje chamamos de cientista), filósofo e literato, homem brilhante, foi de início, como todos nós seres vivos, um ponto e nada mais: germe de vida, que as “leis do movimento” desenvolveram por agregação e que, em meio a acidentes os mais variados, veio a ser o que é. Não é, portanto, um ser racional desde sempre, um sujeito dotado de corpo e alma. Foi apenas e tão somente um amontoado de partículas (“átomos”) que, com o tempo, se desprendem umas das outras e entram na formação de outros corpos, não importa se orgânicos ou minerais. Fábula divertida, ainda mais quando se pensa nas desavenças pessoais e teóricas, exploradas pelo biógrafo, entre o Diderot e o D’Alembert verdadeiros.
Na pena de Diderot, a sátira de um grande homem (que se tinha, ademais, em alta conta) foi o pretexto, inteiramente inesperado, de uma demolição das hierarquias que governavam (e em boa medida continuam a governar) a compreensão humana do mundo natural, isto é, do seu próprio mundo. As fronteiras entre os reinos da natureza se confundem, a hierarquia entre as espécies se desfaz, a ideia mesma de espécie é diluída, e, golpe final, a divisão entre os sexos vacila e é relativizada.
Pólipos humanos
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Faz parte do gênio de Diderot que a tematização deste último tópico se dê não por uma “desconstrução dos gêneros” (Derrida ainda não inventara o termo), mas pela discussão de um objeto que causou furor na metade do século 18: os pólipos, que naturalistas das mais diferentes correntes se prontificaram a ver como criaturas híbridas que estariam no liame entre os reinos animal e vegetal. Figuração sensível de uma passagem conceitualmente inconcebível, os pólipos são seres fascinantes. Para Diderot, que também pensava assim, há outras questões em jogo. O modo assexuado de reprodução característico desses seres sugere que essa função geral dos seres vivos se dá por diferentes métodos que devem ser considerados contingentes. E, do fato de tais ou tais seres se reproduzirem por cópula, acasalamento, polinização ou como quer que seja, pode-se inferir que, em outras circunstâncias, esses mesmos seres poderiam permutar seus métodos — os pólipos se tornarem sexuados e os humanos assexuados, por exemplo. “Pólipos humanos em Júpiter ou Saturno!”, exclama D’Alembert em meio a um delírio onírico, “homens dividindo-se em homens, mulheres em mulheres!”.
A especulação adquire um caráter lúdico. Ou, nas palavras de Curran, “jogando-se com a natureza, é possível mostrar que a raça humana é tudo, menos imutável. Não apenas as variedades humanas mudam com o tempo, mas a espécie mesma pode ser alterada”. Reside aí a essência do método conjectural: considerando-se, a partir da observação de certos fenômenos, as mais absurdas possibilidades, chega-se a uma compreensão avançada de um tópico central para a história natural como ciência empírica e se torna possível testar a hipótese no exame experimental dos objetos naturais. Diderot não explicou a origem das espécies como Darwin, mas, ao propor uma versão da mutação dos seres vivos, e ao deslocar a ênfase de seu estudo da ideia de forma para as de força e movimento, diz Curran, “ele zombou da suposição de que o homem teria um lugar especial no universo, convidando-nos a reconsiderar as eternas categorias que supostamente nos definem, como homem e mulher, animal e humano, e mesmo normal e aberrante”. O filósofo deu assim um passo sem o qual a ideia de seleção natural não poderia ter sido concebida e aplicada como o foi posteriormente — inclusive no que tange à contingência dos métodos de multiplicação dos seres vivos na natureza.
Essa discussão se prolonga no capítulo seguinte, “The sexologist” — uma provocação. Não para sugerir que Diderot seria o precursor de Freud, mas para mostrar como a supressão das hierarquias nos domínios da história natural se estende aos da política. Como na sexualidade — compreendida como um domínio próprio da experiência, um recorte de fenômenos tomados em uma determinada relação que os define — entrecruzam-se natureza e cultura. Por toda parte na obra de Diderot se fala em sexo, prazer e gozo, ora jocosamente, no mais das vezes muito a sério. Poucos filósofos foram tão francos a respeito, e é com um misto de surpresa e alívio que constatamos sua falta de pudor em relação ao tema. Curran acerta ao privilegiar o delicioso “Suplemento à viagem de Bougainville”, sequência de diálogos compostos na década de 1770 que oferecem uma crítica mordaz das práticas sexuais europeias — ou da maneira como sua regulamentação produz uma sexualidade que, longe de ser a única necessária, parece bem pobre, comparada a outras. Para ficarmos apenas em um ponto, Diderot sugere que se compare o papel submisso da mulher europeia, no ato sexual, ao das mulheres do Taiti, que, como observa Curran, aparecem, na boca dos personagens de Diderot, como “isentas de vergonha, crime ou culpa no ato sexual. As mulheres não perdem a honra ao se relacionarem sexualmente, pois não há nenhuma honra na castidade”. Leia-se: a honra ligada à castidade é uma virtude postiça, passível de revisão. Não tem fundamento biológico nem metafísico, é uma regra humana variável. Já o prazer não: aflora em nossa espécie, onde quer que se deem as condições para tanto.
Diderot deu um passo sem o qual a ideia de seleção natural não poderia ter sido concebida e aplicada como foi posteriormente
É inegável, porém, que tudo isso tem ares de filosofia vã e de especulação gratuita. Como provar a verdade de afirmações tão abrangentes e ousadas? Diderot conhecia a fundo a literatura de viagem de sua época, o que o autoriza a ficcionalizar um relato como o Suplemento, dando a ele ares de verossimilhança, isto é, tornando-o, senão verdadeiro, ao menos plausível, e permitindo assim que o leitor reflita sobre o valor de práticas sociais que tendem a ser aceitas prima facie. Também conhecia como poucos a complexa ciência fisiológica de seu tempo, e chegou a contribuir para ela em seu último escrito, inacabado, que traz o título de “Elementos de fisiologia”. Obra ousada, na qual ele pretendia demonstrar que o pensamento é uma função do cérebro, no mesmo sentido em que a circulação diz respeito ao coração, a respiração ao pulmão, e assim por diante. Privados de uma alma, podemos agora reconhecer plenamente a extensão, a complexidade e a profundidade do corpo que nós somos. Esse projeto de redução fisiológica da metafísica começa a ser empreendido já no Sonho de D’Alembert, obra-prima da literatura filosófica de seu tempo, respaldada pelo que havia então de mais avançado em matéria de ciência.
Com isso, nem sequer começamos a penetrar no pensamento de Diderot, algo que só é possível pela leitura de suas obras, e a maioria delas se encontra vertida em bom português. Ao frequentá-las novamente, incitados por Curran, teremos a oportunidade de refletir a fundo sobre as conexões entre filosofia, ciência e literatura, ligadas entre si por uma “arte de pensar livremente” que parece hoje tão preciosa quanto na época em que Diderot a cultivou.
Coqueluche tardia
Desde que foi publicada nos Estados Unidos, no início de 2019, a obra de Curran — professor de literatura francesa na universidade Wesleyan, em Connecticut — vem produzindo considerável impacto. De resenhas ponderadas e refletidas a elogios rasteiros em programas de televisão, percebe-se que Diderot, por incrível que pareça, se tornou, em pleno século 21, uma coqueluche do mundo intelectual de língua inglesa (e dos satélites que orbitam em torno dele). O fenômeno é desconcertante, tendo em vista o silêncio de norte-americanos e ingleses quando das comemorações do tricentenário do nascimento do filósofo, em 2013. Nessa ocasião, pulularam na França as reedições de seus escritos, incluindo uma edição renovada da Biblioteca da Pléiade (a prestigiosa série publicada pela Gallimard), e surgiram alguns livros que podem ser considerados clássicos instantâneos, com destaque para Diderot: Le cul par dessus tête (Diderot de ponta-cabeça), de Michel Delon e Diderot: Un diable de ramage (Diderot: uma algazarra dos diabos), de Jean Starobinski. Seria injusto cobrar de Curran a mesma envergadura intelectual exibida por esses dois mestres.
Curran não pretende ser exaustivo em relação a seu personagem, nem mostra a mesma preocupação de outros biógrafos em tentar compreender o homem Diderot, quem ele foi, o que pensou e sentiu, quais suas frustrações e satisfações. O livro é curto, comparado ao Diderot de Arthur M. Wilson, publicado pela primeira vez em 1957 e que permanece sendo, para todos os efeitos, a “biografia oficial” do filósofo. Para a nossa sorte, o tomo de Wilson foi publicado em português em 2012 pela editora Perspectiva, por iniciativa de Jacó Guinsburg (1921-2018).
Espera-se que o livro de Curran tenha um destino similar entre nós, já que não se destina aos estudiosos do filósofo que queiram conhecer sua vida, mas, voltando-se a um público mais amplo, convida à redescoberta de uma trajetória de militância filosófica, de radical experimentação conceitual e intenso brilho no cultivo da prosa francesa.
Este texto foi realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira
Matéria publicada na edição impressa #22 mai.2019 em abril de 2019.
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