Divulgação Científica,

Inimigo alado

Historiador canadense publica relato detalhado sobre o impacto das doenças transmitidas por mosquitos nas sociedades humanas

25maio2022 | Edição #58

Um relatório anual da Fundação Bill & Melinda Gates sobre os animais mais mortíferos do mundo mostra que, no trono da vilania, quem senta com liderança isolada são os mosquitos, com 2 milhões de óbitos por ano — é mais do que todos os outros animais da lista somados. É mais também do que os Homo sapiens, que matam cerca de meio milhão de sua própria espécie anualmente. Algumas estimativas falam em mais de 50 bilhões de pessoas vitimadas pelas doenças que os mosquitos transmitem desde que a nossa espécie surgiu. Eis um bom motivo para retratar a saga das interações entre nós e esses insetos como se ela fosse uma variante da história militar global — e é essa a abordagem adotada por Timothy Winegard em O mosquito.


O mosquito: a incrível história do maior predador da humanidade, de Timothy C. Winegard

Hoje professor da Colorado Mesa University (EUA), o autor foi oficial dos exércitos canadense e britânico antes de seguir carreira acadêmica, o que pode explicar o destaque que os conflitos armados recebem em sua narrativa. Do confronto entre Roma e Cartago pela supremacia no Mediterrâneo às batalhas da Segunda Guerra Mundial no Pacífico, ele sublinha o papel dos mosquitos na trajetória dos principais embates bélicos da história.

A afirmação vale, em alguma medida, para todas as espécies capazes de transmitir organismos causadores de doenças para a nossa corrente sanguínea. Mas a posição de protagonista cabe inequivocamente aos vetores dos diferentes tipos de malária, os mosquitos do gênero Anopheles — ou “general Anófeles”. (Como apenas as fêmeas de mosquitos costumam sugar sangue, estratégia que turbina os nutrientes que legam a seus ovos, o autor se refere ao bicho como “ela” no original, mas é compreensível que a tradução tenha evitado a estranheza de usar a expressão “generala Anófeles”.)

No Velho Mundo, durante as guerras da Antiguidade e da Idade Média, o potencial destrutivo dos sanguessugas alados normalmente não fazia muita distinção entre exércitos. Sua atuação, ecumenicamente destrutiva, ajuda a explicar por que a morte durante os conflitos pré-modernos só raramente era causada pelas espadas, lanças e flechas do inimigo. Quase todas as baixas aconteciam por doenças infecciosas, que encontravam terreno fértil na precariedade das condições sanitárias dos acampamentos e nos rios e pântanos onde as larvas se multiplicavam.

A maioria das mortes nos conflitos pré-modernos não foi causada por espadas, mas por doenças infecciosas

O cenário talvez explique a morte de líderes como Alexandre, o Grande (356 a.C.–323 a.C.) e Gêngis Khan (1158-1227). Também teriam facilitado a ascensão imperial de Roma por obra e graça dos Pântanos Pontinos, região tão favorável à multiplicação do Anopheles que poucos exércitos conseguiam sitiar o centro do poder romano durante muito tempo sem serem dizimados pela malária. Uma muralha de mosquitos pode ter protegido Roma dos cartagineses de Aníbal e até de Átila, o Huno.

O livro, porém, só começa a cumprir o que promete quando analisa o ocorrido depois que Cristóvão Colombo cruzou o Atlântico e desembarcou no Caribe, em 1492. Os europeus invadiram um continente que, ao que tudo indica, era terreno virgem para as doenças transmitidas por mosquitos (e todos os demais patógenos mortíferos do Velho Mundo). Esse fato ajudou a desencadear um gigantesco efeito dominó histórico, concentrando num único nexo causal muitos dos elementos epidemiológicos, étnicos, econômicos e geopolíticos que forjaram as Américas que conhecemos hoje.

Arquitetos da escravização

A escravização de indígenas não falhou após os primeiros séculos da invasão europeia por uma suposta inaptidão dos nativos, mas porque a chegada da malária e da febre amarela dizimou sua população. Já os africanos escravizados vinham de regiões onde a convivência de longo prazo com os causadores da malária havia selecionado variantes de dna que conferiam resistência parcial à doença. Quando até isso falhava, as sucessivas reinfecções podiam acabar protegendo africanos adultos dos piores efeitos de um novo ataque dos inimigos microscópicos (embora isso cobrasse um preço altíssimo em mortalidade infantil).

Assim, a substituição de um tipo de mão de obra escravizada por outra não tem como ser separada da sede de sangue do Anopheles. O mesmo vale para o predomínio demográfico dos africanos em boa parte da América tropical — os europeus, com menos defesas naturais, tinham muito mais dificuldade para estabelecer populações viáveis em seus novos domínios.

Não que a malária fosse desconhecida na Europa — regiões pantanosas do continente, como a costa inglesa, sofriam com o problema havia muito tempo. Mas as zonas mais frias precisavam enfrentar uma variante menos letal do parasita, enquanto a africana, bem mais agressiva, prosperava nas quentes. As diferenças biogeográficas entre os dois micro-organismos são uma das explicações para a existência da chamada Linha Mason-Dixon, que separava os estados do norte dos do sul dos Estados Unidos, com poucos escravizados e malária leve no lado setentrional e escravidão intensiva, malária severa e febre amarela no meridional.

Infelizmente, não é sempre que o autor consegue combinar harmoniosamente os diferentes aspectos da influência histórica do general Anófeles e seu braço direito, o general Aedes. O calcanhar de Aquiles de seu gosto pela abordagem bélica é que parte considerável do livro vai pouco além de um resumo das principais campanhas militares da história. Por vezes, Winegard parece esquecer que esse não é um livro sobre as Guerras Púnicas ou o Império Mongol.

Na conclusão, o autor também parece se deixar vitimar por uma das grandes doenças infecciosas do século 21: a tecnomiraculite. Após mostrar com competência como certas formas de tecnologia moderna, como os inseticidas e os remédios antimaláricos, ainda estão longe de derrotar os mosquitos, ele aposta todas as fichas na manipulação do dna da criatura. Técnicas de edição genômica poderiam muito bem extinguir o inseto ou torná-lo inofensivo, diz ele. A empolgação, ao menos com base no que sabemos hoje, é pouco realista. Descontados esses defeitos, o leitor, munido de alguma paciência, terá muito a aprender.

Quem escreveu esse texto

Reinaldo José Lopes

É autor de Darwin sem frescura (Harper Collins).

Matéria publicada na edição impressa #58 em fevereiro de 2022.