Divulgação Científica,
A incrível saga da ciência psicodélica
Livro mostra como drogas proibidas há décadas, como LSD e MDMA, podem revolucionar o tratamento de diversas doenças
01maio2021 | Edição #45“Quando a insanidade se instala, leva muito tempo para ser desfeita.” A declaração, que poderia perfeitamente ser uma crítica aos efeitos devastadores do governo Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia da Covid-19 no Brasil, é de Amanda Feilding, uma respeitada senhora britânica, protagonista e pioneira na incrível saga da ciência psicodélica. Ela se refere à perseguição aos alucinógenos a partir da marcha proibicionista do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, na década de 1970.
Amanda é hoje uma das vozes mais potentes na cruzada pela liberação dos psicodélicos, há décadas colocados na mesma categoria de drogas perigosas como heroína, metanfetamina e cocaína, embora, como já comprovado por inúmeros estudos, sejam muito pouco tóxicos e não causem dependência. Ao jornalista Marcelo Leite, autor de Psiconautas, ela fala da luta que empreende há mais de cinquenta anos por uma mudança na política mundial de drogas e dos benefícios para a saúde de substâncias como LSD, MDMA e ayahuasca.
O livro é um dos primeiros a sair do forno da nova editora Fósforo, e a aposta no tema é louvável. A publicação ajuda a preencher uma lacuna de títulos nacionais sobre um assunto de interesse cada vez mais global, mas ainda pouco explorado pelo mercado editorial brasileiro. Na obra, Leite, que é colunista de ciência do jornal Folha de S.Paulo, foca a corajosa empreitada de cientistas que colocaram em risco sua própria carreira ao pesquisar o potencial terapêutico de substâncias polêmicas. E também repassa a trajetória de um destemido e bem-sucedido time de pesquisadores brasileiros apaixonados pelo tema.
A obra chega em um momento tão oportuno quanto singular. Essas substâncias, perseguidas e demonizadas por décadas, estão sendo encaradas como novas possibilidades de tratamento para uma quantidade cada vez maior de enfermidades, não mais apenas transtornos mentais. Os resultados cada vez mais promissores também transformaram esse campo de estudos em um emergente e disputado setor de negócios e investimentos. Em março deste ano, a Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, anunciou seu primeiro programa de mestrado relacionado aos psicodélicos em ciências farmacêuticas. Na ocasião, a instituição estimou que o setor deve crescer aproximadamente 20% ao ano na próxima década, movimentando valores em torno de us$ 100 bilhões até 2030, recorte que Leite também aborda no livro.
A jornada do autor pelo tema começou durante a cobertura da conferência Psychedelic Science para a Folha em abril de 2017, em Oakland, na Califórnia. O evento reuniu a elite psicodélica da comunidade científica internacional e os encontros, entrevistas e conversas durante o histórico evento renderam mais histórias do que o jornalista poderia contar no limitado espaço de sua reportagem. Pouco depois, o então diretor do jornal, Otavio Frias Filho, disse-lhe que o tema renderia um livro, e o autor embarcou na ideia, que já reverberava em sua cabeça.
O setor dos psicodélicos deve crescer 20% ao ano na próxima década e movimentar em torno de us$ 100 bilhões até 2030
Essa primeira escala da incursão pelo tema, no evento em Oakland, realizado na crista da onda de um movimento que ganhou o nome de renascença psicodélica, rendeu bons trechos na obra. Leite conta, por exemplo, sobre a fala da antropóloga brasileira Bia Labate, a terceira a discursar na abertura da conferência, “após dois gigantes da resistência psicodélica nas mais de três décadas de hegemonia proibicionista, o americano Rick Doblin e a britânica Amanda Feilding”. “Nem tudo diz respeito só às moléculas”, afirmou ela na conferência, apontando para um debate que começa a ganhar mais espaço conforme avançam os estudos sobre as substâncias: a distância entre cientistas psicodélicos e povos tradicionais, detentores milenares de conhecimentos sobre plantas psicoativas. “A cura não diz respeito só à eficácia das substâncias, só aos princípios farmacológicos. A cura depende de relações, de contexto, de outras pessoas”, completou a antropóloga.
Ayahuasca contra a depressão
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Leite consegue entregar em seu livro um amplo e atualizado panorama do recorte científico do tema dos psicodélicos. O jornalista destaca, por exemplo, um teste clínico pioneiro com a beberagem amazônica ayahuasca para tratamento de depressão conduzido por um time de cientistas brasileiros, entre eles Dráulio de Araújo, Stevens Rehen e Luís Tófoli. Muitas páginas são dedicadas a explicar como os psicodélicos atuam no cérebro. Com riqueza de detalhes e de forma pedagógica, apoiado no auxílio de pesquisadores, o autor esmiúça o efeito terapêutico dessas substâncias.
“A planta professora leva você a pensar na sua vida, desbloqueia o que a gente varre para baixo do tapete”, compara o biofísico Bruno Soares, que também participou do estudo clínico com ayahuasca realizado no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ufrn), fundado pelo neurocientista Sidarta Ribeiro — outro nome importante no time brasileiro de cientistas psicodélicos e que assina o prefácio do livro.
Segundo Leite, a indução da neuroplasticidade é uma das hipóteses para explicar o efeito terapêutico de psicodélicos como ayahuasca em seres humanos — “novos circuitos, memórias sendo reprocessadas ou criadas, abertura de janelas para romper o círculo de fixação dolorosa de ideias”. Para ajudar os leitores a entender algo que é relativamente complexo, o jornalista lança mão, por vezes, de uma analogia entre o cérebro e os serviços de streaming e televisão por assinatura: “As novas conexões entre neurônios equivaleriam a retomar o acesso perdido aos canais variados — comédia, romance e aventura, por exemplo, em vez de só drama, guerra e biografias sofridas”.
“Psiconautas são pessoas que usam psicodélicos”, explica Leite à Quatro Cinco Um sobre o título que escolheu. Além de contar a jornada da ciência psicodélica e de seus heroicos protagonistas, os cientistas psiconautas, o livro traz também histórias reais, bem-sucedidas ou frustradas, de pessoas que foram buscar nessas substâncias a cura para diferentes doenças. Merecem elogios o rigor científico e o cuidado com as informações presentes na obra. Tanto na abordagem das pesquisas, cheia de explicações minuciosas, como ao falar dos pacientes que participaram de estudos, protegendo identidades reais, Leite é impecável. Essa qualidade não chega a surpreender; afinal, o autor é um jornalista premiado, especializado em ciência, bolsista das universidades Harvard e Michigan, com extensa trajetória e diversos livros publicados sobre temáticas científicas, entre eles Promessas do genoma (Editora Unesp, 2007) e Ciência: use com cuidado (Editora da Unicamp, 2008).
Autoexame
O diferencial de Psiconautas está justamente na veia experimental do livro, que dá à narrativa de Leite uma camada de “jornalismo gonzo”, embora bem tímida. Incorporando uma mistura do antropólogo “guru” dos psicodélicos, Carlos Castañeda, e o jornalista Hunter Thompson, mentor do estilo jornalístico “gonzo”, em que o repórter se torna personagem central da narrativa, Leite se submeteu a algumas experiências com psicoativos para entender melhor o assunto sobre o qual estava escrevendo.
No prefácio de Psiconautas, o neurocientista Sidarta Ribeiro também destaca a importância, para uma narrativa mais profunda, de o autor ter optado por aprender sobre os efeitos dessas substâncias em si mesmo. O resultado, segundo Ribeiro, entrelaça uma revisão ampla e atualizada dos principais fatos científicos relacionados aos psicodélicos e uma saborosa descrição fenomenológica da experiência pessoal. “Reportagem em carne viva, ali onde jornalismo se confunde com antropologia e psicologia experimental. Um autoexame radical na zona de arrebentação da consciência.”
Matéria publicada na edição impressa #45 em abril de 2021.
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