Divulgação Científica,

50 tons de azul

Maior cientista marinha da atualidade dá lições importantes em livro sobre oceano, mas apoia políticas questionáveis do governo brasileiro

01abr2018 | Edição #10 abri.2018

Vivemos, à beira-mar, num verdadeiro deserto de letras quando o assunto é oceano. Por isso, é oportuno o lançamento da edição brasileira de A Terra é azul, livro da bióloga marinha Sylvia Earle, publicado em 2009 pela National Geographic Society. 

Sylvia Earle só dispensa apresentações para os poucos letrados que se dedicam a evitar o iminente colapso da etnobiodiversidade nos mais de 3,5 milhões de quilômetros quadrados do Atlântico sob soberania econômica exclusiva do Brasil. Para os demais, é importante ressaltar que não se trata de uma autora ordinária escrevendo sobre um tema extraordinário. Sylvia é uma cientista marinha pioneira, certamente a mais influente do planeta.


Sylvia Earle no submersível Deep Worker

Sua carreira como ficóloga, ou estudiosa das algas, ganhou impulso meteórico a partir da década de 1970, quando liderou uma equipe 100% feminina em um ambicioso projeto de residência submarina. No auge da corrida espacial, a General Electric e o governo dos Estados Unidos estavam interessados em testar equipamentos e avaliar como seria a vida em confinamento, sob ambientes extremos. Para isso, construíram uma “estação espacial” submarina nas Ilhas Virgens.

O oceano é o espaço sideral no quintal de casa: desconhecido, extremo, irrespirável. Com sua dupla paixão pela ciência e pela tecnologia de exploração submarina, compartilhada com o ex-marido e a filha, Sylvia rompeu inúmeras barreiras no universo masculino da ciência, da engenharia, do empreendedorismo e da política. Desceu sozinha, em um traje blindado, a quatrocentos metros de profundidade, participou da concepção e dos testes de submersíveis tripulados abaixo dos mil metros, fundou empresas, criou e integrou diversas ONGs ambientalistas e foi estrela da revista Time, das conferências TED e da Netflix. 

Também atuou como cientista-chefe da agência norte-americana do clima e oceano, a poderosa NOOA (National Oceanic and Atmospheric Administration), no governo de Bush-pai — a despeito de ser uma crítica feroz dos impactos da indústria do petróleo. Por tudo isso, ao imergir no “mundo azul” de Sylvia constatamos que ele está para o oceano assim como “o mundo redondo” de Pelé está para o futebol — ou seja, nem sempre as coisas são tão azuis nem tão redondas quanto esses craques gostam de pintar.

Biodiversidade

Obra de divulgação científica, e por isso longe de ser um tratado de oceanografia, o livro contextualiza, com sólida base documental, a trajetória de declínio dos ecossistemas oceânicos a partir da relação da sociedade pós-industrial com a biodiversidade marinha. O fio condutor é a interdependência entre a existência humana e a saúde do oceano, provedor não-tão-incansável de rotas de comércio, combustíveis, matérias-primas, alimento e de boa parte do oxigênio que respiramos. Entre os capítulos dessa história está a carnificina promovida pela caça indiscriminada às baleias e outros animais gigantes, muitos deles já extintos, o colapso recente dos estoques pesqueiros e o entupimento do oceano por lixo plástico, narrados em paralelo às aventuras da autora, tanto submarinas como as que viveu em mesas de negociação. 

Sylvia aponta para um extrativismo ?high-tech?, com equipamentos de pesca não destrutivos

De modo suave e acurado, a autora faz uma introdução aos principais avanços nas ciências do mar e à relação estreita entre atmosfera e oceano. 

Os céticos das mudanças climáticas antropogênicas, que se regozijam com a última onda de frio siberiano na Europa, têm no livro uma excelente oportunidade para revisar sua base factual e aprender que o oceano, destino final dos gases do efeito estufa, está cada vez mais quente e ácido, pois absorve a maior parte das emissões de dióxido de carbono (CO?). 

Estão dadas condições para o segundo efeito do CO?, a acidificação do oceano, fenômeno que compromete uma longa lista de processos fisiológicos e ecossistêmicos, tais como a biomineralização do carbonato de cálcio (conchas, cascas e esqueletos!). Em resumo, CO? + H?O = H?CO? (ou ácido carbônico).

Fascinação

Otimista incansável, a partir da segunda metade do livro a autora tira o foco desse quadro de melancolia e desgraça para apresentar um cardápio de possibilidades menos sombrias (e pouco prováveis). Antes de partir para o indigesto tema da governança global sobre o oceano, Sylvia contagia o leitor com a sua fascinação pelo rompimento das barreiras tecnológicas que nos impedem de conhecer os dois terços do planeta que estão sob água salgada gelada, alta pressão, e escuridão perpétua. O tema flui gostosamente em meio a aventuras com pilotos de submarinos nucleares e conversas com concorrentes russos que fincam bandeiras nas profundezas do Polo Norte.

O binômio ciência e conservação, presente em todo o livro, fica mais evidente em seu encerramento, de tom prescritivo. Sylvia aponta, inicialmente, para um extrativismo high-tech, sem subsídios perversos, com equipamentos de pesca não destrutivos e focados em espécies de vida curta e crescimento rápido, além de uma aquicultura sustentável. 

Porém o leitor encontrará poucas dicas sobre como seria induzida a necessária transição do modelo atual — que supre nossos ávidos mercados consumidores com camarões baratos, produzidos em áreas devastadas de florestas de manguezais, e salmão alimentado à base de outros peixes (não cultivados!), turbinados por coquetéis de aditivos — para outro modelo, mais sustentável.

O roteiro da reconciliação com os mares termina de forma previsível, espelhando a obsessão dos ambientalistas profissionais com Panacea, a deusa grega da cura de todos os males. 

Com a criação de imensas unidades de conservação, o Brasil entrará no seleto grupo de países com grandes áreas protegidas

Apesar das múltiplas doenças, a panaceia receitada por Sylvia reside na criação de vastas unidades de conservação, nas quais os usos e até mesmo a presença humana seriam vedados ou limitados. Ótima ideia para algumas situações, mas insuficiente para dar conta de todos os males que acometem o oceano. Pense, para começo de conversa, nos problemas do clima, do lixo e da poluição da água. 

O leitor fica mais uma vez a ver navios se, indo além da ciência e da tecnologia, pensar no contexto socioeconômico e político dos países tropicais pobres, que abrigam a maior parte da biodiversidade marinha, e sua vasta diversidade de usuários. Cercas e polícia costumam não funcionar. 

O viés de Sylvia é compreensível se considerarmos as condições sob as quais se forjou sua causa: o vigor e otimismo pós-Guerra, o ambientalismo grassroots de Rachel Carlson contra os agrotóxicos e a criação dos vastos parques naturais norte-americanos, como Yellowstone, dos quais as populações originárias já haviam sido extirpadas.

Recursos e votos

E esta resenha termina perto de onde começou. Não por acaso, A Terra é azul nos chega quase uma década depois de ter sido publicado nos Estados Unidos, por ocasião da passagem da autora por terras e águas brasileiras. 

Sylvia veio em nobre missão azul, em apoio ao processo de marinização dos nossos tomadores de decisão. Para estes, o Atlântico Sul e os povos do mar têm sido fonte inesgotável de recursos e votos, respectivamente. Em reunião com o presidente  da República e o ministro do Meio Ambiente, ambos pré-candidatos, acompanhados pela alta corte ambientalista e pelo ministério da Defesa — a panaceia de Temer —, Sylvia ajudou a renovar o eterno sonho de um Brasil grande e protagonista.

A leitura de ‘A Terra é azul’ é essencial, mas deixo aqui minhas ressalvas sobre a transposição imediata de seu receituário

Com a criação, anunciada com a presença de Sylvia Earle no início de março, de imensas unidades de conservação no entorno dos arquipélagos remotos de São Pedro e São Paulo, Trindade e Martim Vaz, o Brasil entrará no seleto grupo de países com grandes áreas marinhas protegidas. E certamente deixará esses “parques de papel” sem nenhuma fiscalização nem monitoramento, conferindo-lhes a mesma falta de atenção dispensada à gestão da pesca e das poucas reservas já criadas próximo à costa. 

Além disso, a proteção de vastas áreas de águas abertas e profundas, que o Brasil ainda não estudou por pura falta de visão estratégica sobre o oceano, contribui muito pouco para atingir as metas da Convenção sobre Diversidade Biológica (Metas de Aichi). A convenção, da qual o Brasil é o primeiro signatário e que não conta com a adesão dos Estados Unidos, estabelece que os países deverão conservar 10% dos seus mares por meio de sistemas de áreas protegidas, geridas de maneira efetiva e equitativa, ecologicamente representativas e satisfatoriamente interligadas por outras medidas espaciais de conservação, e integradas em paisagens terrestres e marinhas mais amplas.

A leitura de A Terra é azul é essencial para os que desejam construir uma visão geral do estado do oceano. Mas deixo aqui minhas ressalvas sobre a transposição imediata do receituário de Sylvia Earle para a resolução de nossos problemas. Ainda mais quando aplicadas por um governo que demonstra, consistentemente, pouco apreço pelo meio ambiente e pela ciência como componentes essenciais para o desenvolvimento.  

Quem escreveu esse texto

Rodrigo Leão de Moura

Professor da UFRJ, é coautor de Alcatrazes (Cultura Sub).

Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.