Direito,

Nove juízes e alguns segredos

Analista jurídico da CNN e The New Yorker conta os bastidores das principais decisões da Suprema Corte americana

28fev2019 | Edição #20 Mar.2019

O interesse despertado pelas cortes constitucionais é natural: na maior parte do mundo, elas representam a mais alta instância do Poder Judiciário e julgam casos importantes para o funcionamento de um país, seja na economia, seja na política. A curiosidade que elas provocam vai além da perspectiva jurídico-argumentativa ou da filosofia judicial das suas decisões. Ela se volta especialmente aos seus aspectos institucionais, bem como às características pessoais de cada um dos seus atores. 

Não poderia ser diferente com a Suprema Corte dos Estados Unidos, cujo modelo inspira muitos outros tribunais mundo afora. Os segredos e os bastidores das suas decisões mais célebres nos são revelados por Jeffrey Toobin em Os nove: por dentro do mundo secreto da Suprema Corte. Em uma narrativa cativante, o autor, que é comentarista de assuntos jurídicos na CNN e colaborador da revista The New Yorker, enfoca os períodos em que ela foi presidida por Willian Rehnquist (1986-2005) e seu sucessor, John Roberts Jr., que ocupa o cargo até hoje. 

A instituição é palco da eterna disputa entre republicanos e democratas sobre o papel do Estado 

Os nove, como é de se presumir, são os juízes que compõem essa instituição, protagonistas de um enredo marcado pela eterna disputa entre republicanos e democratas acerca do papel do Estado e da corte em questões cruciais para esses partidos: aborto, expansão do Poder Executivo, federalismo, pena de morte, ações afirmativas e a relação entre Estado e Igreja.  

O livro tem um arco temporal que se estende até as proximidades de 2007, ano de sua publicação nos Estados Unidos. Sem maiores pretensões teóricas, Toobin articula a concepção de que não há uma verdadeira separação entre direito e política. Desde o momento da busca por um juiz a ser indicado para uma vaga, passando pela nomeação presidencial, pela sabatina no Senado e pelos momentos que antecedem e sucedem (incluindo a aposentadoria) a ocupação de uma cadeira na Suprema Corte, fica clara a ideia de que todos os compromissos, dinâmicas, comportamentos e decisões são movidos por interesses político-ideológicos. Logo, quem escolhe um juiz da Suprema Corte determina em grande parte o futuro das decisões da instituição.

A “regra dos cinco” reflete essa realidade, pois remete ao número de votos necessário para que prevaleça uma posição republicana ou democrata em determinado assunto. É indiferente, portanto, que alguns juízes evoquem o respeito aos precedentes judiciais, ao princípio da colegialidade, ou mesmo à heterodoxa importância dos dizeres originais dos constituintes, ou founding fathers (escola de interpretação batizada de “originalismo”). No final, o que realmente interessa é que uma dada ideologia  ou concepção de Estado vença. 

Nessa batalha, os casos envolvendo o direito ao aborto ilustraram as mais significativas preocupações partidárias defendidas dentro da Suprema Corte. Os movimentos conservadores republicanos de base, em defesa da vida do feto, fizeram da reversão da decisão no caso Roe v. Wade (1973) — que permitiu que mulheres de todo o país tivessem o direito de escolha quanto à realização ou não de aborto — sua grande meta. Para tanto, era necessário que o partido tivesse o controle da corte a partir de nomeações que defendessem a criminalização do aborto. Particularidades desse caso e de outros sobre o tema, como em alguns envolvendo a Planned Parenthood, entidade que dá às mulheres acesso a métodos contraceptivos e a abortos seguros,  são contadas em detalhes ao longo da obra.

Baseado em entrevistas anônimas de juízes e dezenas de assessores, bem como em fontes documentais, o livro explica como foi conjecturada uma contrarrevolução em oposição às decisões liberais da corte presidida por Earl Warren (1953-69) — período em que, dentre outras medidas, se determinou o fim da segregação racial em escolas públicas — e o peso decisório que a juíza Sandra O’Connor e, posteriormente, o juiz Anthony Kennedy (indicados pelo republicano Ronald Reagan) tiveram em muitos dos casos no período abordado por Toobin. 

A corte é respeitada pela opinião pública, mesmo que suas decisões não agradem a todos

Aliás, aos mais atentos, ficará evidente a importância que a narrativa dá a O’Connor, uma vez que a personalidade dos juízes, segundo o autor, molda as interações na corte e, por vezes, define os resultados dos julgamentos. É o caso dela, conciliadora, e de Stephen Breyer, persuasivo, em oposição aos destemperos de Antonin Scalia e do emudecimento permanente de Clarence Thomas, por exemplo.

Brasil

Ao leitor brasileiro fica a dúvida: Será que essa narrativa é válida para o Supremo Tribunal Federal? Pelo fato de o sistema político brasileiro ter uma composição partidária bastante fracionada e distante do bipartidarismo americano, estudos apontam que o funcionamento do STF se dá em torno de coalizões temporárias fundadas em indicações presidenciais. Os julgamentos de grandes casos, contudo, evidenciam o interesse de ministros por poderes individuais, a centralização personalista e os juízos de oportunidade. 

Diferenças de organização e de volume de trabalho à parte, o retrato que Toobin desenha da Suprema Corte e seus componentes apresenta preocupações partidárias e institucionais fortes. A desconfiança em torno das sentenças nos casos que determinaram a suspensão da recontagem de votos e assim definiram o resultado das eleições presidenciais de 2000 — vitória de George W. Bush sobre Al Gore —, são tidas como pontos fora da curva, derrapagens reputacionais em raras exceções à regra de comportamento da corte. Ali, pretensões de imparcialidade foram afastadas com a mudança dos procedimentos habituais quanto ao tempo de julgamento e tipo de votação interna, e princípios jurídicos foram aplicados inadequadamente.

Mesmo que a vaidade e a disputa por reconhecimento jurídico ou político existam em qualquer das duas cortes, os níveis de engajamento que seus integrantes têm com o dever de preservação da imagem da instituição parecem ser bastante distintos. A sensação que fica no exercício comparativo entre ambas é que, mesmo que se aceite a visão encampada pelo autor, de que toda decisão da Suprema Corte tem motivação essencialmente política, o caminho e a natureza da política traçada pelo STF estão bem distantes da visão de Toobin sobre a realidade americana. Aqui parece prevalecer uma hostilidade à construção de uma instituição forte, enquanto lá as decisões são tomadas em nome dela -— qualquer que seja a base ideológica da vez. 

Por mais que Toobin banalize a difícil tarefa de separar o direito da política, ele o faz sem nos remeter a um cenário de desconfiança e desconforto em relação ao comportamento dos juízes. Em geral, a Suprema Corte é descrita como uma instituição respeitada pela opinião pública, mesmo que suas decisões não agradem a todos. Há uma significativa diferença entre o reconhecimento da natureza política de uma corte constitucional e a compreensão de que, em decorrência disso, ela pode atuar às margens de normas e procedimentos transparentes. A importância do equilíbrio entre confiança na administração do Judiciário e exercício adequado do poder dos juízes é mais um dos segredos descortinados na obra, e pode ser útil para uma reflexão sobre as práticas da corte das bandas de cá.

Quem escreveu esse texto

Lívia Gil Guimarães

É pesquisadora do grupo Constituição, Política e Instituições, da Universidade de São Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #20 Mar.2019 em fevereiro de 2019.