Direito,

Janelas de oportunidade

Estudos sobre meios de participação da sociedade no Supremo apontam avanços democráticos, apesar de aspectos discutíveis

15nov2018 | Edição #10 abri.2018

Pode o povo participar do processo de interpretação constitucional? Qual seria o seu papel? Perguntas dessa natureza não são novas nos debates constitucionais. Desde sempre existiu uma tensão entre os diversos atores do cenário político para dizer quem detém mais legitimidade para ditar o conteúdo da Constituição. Há quem diga que cabe ao Poder Legislativo, como representante eleito, dizer o que é ou não direito e dever de cada cidadão. Há quem defenda que a supremacia da interpretação cabe ao Judiciário, formado por membros não eleitos, mas preparados tecnicamente. Existe, ainda, quem considere que a tarefa é de ninguém menos do que do próprio povo, afinal, é dele que emana o poder de todos os outros, direta ou indiretamente, e é a ele que suas prescrições se dirigem.

No Brasil, essa pergunta tem tomado corpo nos últimos tempos. Com a explosão do fenômeno da judicialização da política, o Supremo Tribunal Federal ganhou centralidade por decidir casos complexos, que despertam profundas divergências na sociedade. Ao arbitrar questões como demarcação de terras indígenas e quilombolas, ações afirmativas para negros no ensino superior, união estável para pessoas do mesmo sexo, aborto de fetos anencéfalos, gargalos estruturais do sistema carcerário, ensino inclusivo para pessoas com deficiência, registro civil de pessoas trans etc., o Supremo aparece como instituição-chave para administrar conflitos entre os interesses dos diversos grupos sociais.

Saber se o STF é a instituição mais apta para moderar os interesses em cena é a pergunta que faz Rafael Bezerra em Direitos para além da sala do tribunal: Um estudo de caso comparado entre Brasil e Colômbia. O estudo traz importantes críticas a respeito das (in)capacidades institucionais do STF para lidar com demandas estruturais — aquelas que exigem do julgador mais do que uma resposta binária entre reconhecer ou não um determinado direito, mais uma orientação sobre como o ente público deve realizar aquele direito.

A partir de estudo empírico do caso da demarcação de terras indígenas na região de Raposa Serra do Sol, em Roraima, o autor indica que o STF não tem sido capaz de concretizar os direitos econômicos, sociais e culturais nos chamados “litígios estruturais”. A principal razão para essa conclusão é que o tribunal não percebe as suas próprias limitações e não busca dialogar com os demais poderes e com os atores sociais envolvidos. Isso impede que o tribunal compreenda a multidimensionalidade do conflito estrutural, provoca isolamento e levanta dúvidas quanto à sua legitimidade, pois esta, para o autor, decorre da performance institucional, isto é, do desempenho da instituição na execução de suas atividades.

Constitucionalismo difuso

Se compartilharmos das premissas e dos resultados do autor, teríamos que relativizar a visão heroica normalmente construída em torno das supremas cortes como intérpretes constitucionais. É nessa direção que caminha o livro de Juliana Cesario Alvim Gomes, Por um constitucionalismo difuso: cidadãos, movimentos sociais e o significado da Constituição.

De maneira engenhosa, a autora defende a ideia da necessidade de um “constitucionalismo difuso”, ou seja, exercido por todos: agentes institucionais e não institucionais, especialmente cidadãos e movimentos sociais. A cointerpretação dos direitos pela sociedade teria como fundamento a noção de que quanto mais a Constituição se assemelhar à ideia que o cidadão possui dela, mais as decisões judiciais serão legítimas e efetivas.

A apropriação popular do sentido constitucional seria um processo cultural e simbólico importante para a construção exitosa da Constituição

Segundo Juliana, a apropriação popular do sentido constitucional seria, quer pelas vias institucionais, quer extrainstitucionais, um processo cultural e simbólico importante para a construção exitosa da Constituição. Essa apropriação oxigenaria a cultura jurídica e derrubaria a tradicional visão paternalista e elitista da compreensão sobre direitos. 

As ideias veiculadas em ambos os livros integram uma agenda de discussão sobre a participação social no STF por meio de seus dois canais mais relevantes: as opiniões de amicus curiae (os “amigos da corte”) e as audiências públicas. A aplicação dessas ferramentas no STF tem apresentado problemas. Entre eles, destacam-se a repetição de atores e grupos de interesse, a falta de transparência nos mecanismos de seleção dos participantes, as barreiras de acessibilidade e a mínima participação de ministros do tribunal.

Ainda assim, atores sociais têm conseguido atuar nesse espaço. Em caso recente, sobre a soltura de presas preventivas grávidas ou mães de crianças de até doze anos que não cometeram crime com violência ou grave ameaça, por meio de habeas corpus coletivo, a atuação de entidade de defesa dos direitos da criança e do adolescente (Instituto Alana) como amigo da corte possibilitou a equiparação da decisão para adolescentes em igual situação.

Embora as pesquisas mais recentes indiquem a baixa potencialidade de democratização do STF por essas vias, elas não deixam de ser relevantes para diversos grupos que se organizam para participar dessa arena pública e contribuir, à sua maneira, com o processo de interpretação constitucional. Nesse cenário, inclusive, inúmeras entidades em defesa e contra o aborto até a 12ª semana de gestação já se mobilizaram em número recorde até hoje no STF: são 37 pedidos de participação, até o presente momento.

Claro que podemos (e devemos) questionar quem são essas pessoas e grupos, bem como as dificuldades impostas pelo desenho dessas ferramentas. Mas, de uma forma geral, diante dos déficits de capacidades institucionais do Supremo, essas ocasiões aparecem como janela de oportunidade para que os ministros escutem os grupos impactados e ampliem a qualidade e efetividade de suas decisões. A reforma desses instrumentos e o seu uso mais responsável por parte do tribunal contribuiria para uma genuína democratização do processo constitucional.

Quem escreveu esse texto

Lívia Gil Guimarães

É pesquisadora do grupo Constituição, Política e Instituições, da Universidade de São Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.