Desigualdades,

PT, agora é outra história

Em livro sobre a história do Partido dos Trabalhadores, Celso Rocha de Barros desata nós do passado, mas deixa em aberto dilemas para o futuro

01mar2023 | Edição #67

O ano de 2022 terminou otimista — não apenas pela derrota eleitoral do autoritarismo, mas também pelo retorno da reflexão sobre o futuro do país. Nesse cenário, o livro PT, uma história, de Celso Rocha de Barros, funciona não apenas como um balanço do passado, mas, sobretudo como um convite à reflexão sobre o futuro.


PT, uma história, de Celso Rocha de Barros, funciona como um convite à reflexão sobre o futuro

Seus méritos são vários, mas destaco quatro. Primeiro, o livro desenrola o emaranhado novelo de movimentos que deram origem ao primeiro partido brasileiro nos quais os coletivos da sociedade civil tiveram mais peso do que lideranças oriundas do Estado. Ao sindicalismo dos anos 80 coube a mobilização dos trabalhadores organizados, dos metalúrgicos aos bancários, passando por professores e outras categorias. À esquerda católica coube a articulação dos movimentos pouco institucionalizados por meio das comunidades eclesiais de base. Somou-se a esses grupos uma miríade de outros — ex-trotskistas, intelectuais neomarxistas e militantes dos novos movimentos sociais, como feministas, negros e negras, membros da comunidade lgbtqia+ e ambientalistas.

As relações entre esses movimentos estavam longe de ser harmônicas. Muitas foram as tensões entre feministas e religiosos, marxistas e homossexuais, sindicalistas e movimento negro. Barros destaca a dura relação do partido com a militância antirracista, o que levou à desfiliação de Lélia Gonzalez. De todo modo, o partido, que tinha tudo para se tornar uma federação amorfa de tendências, tornou-se aos poucos uma máquina eleitoral com um projeto político relativamente convergente. Esse cuidado com o complexo tricô que fundou o PT faz com que o livro, que poderia ter se tornado um maçante tratado de ciência política, consiga traçar com primor o fio condutor que o formou.

Boa parte do livro se assenta na premissa de que as ‘forças do atraso’ impedem que o país se desenvolva

O segundo mérito do livro é esclarecer essa história sem deixar que ela desapareça sob a sombra de Lula. É fato que o “lulismo” ultrapassou o “petismo”, e a bibliografia sobre Lula parece proliferar mais rápido que aquela sobre o PT. Porém mesmo os detratores da legenda não ousam contestar a amplitude dos movimentos sociais que a construíram e, sobretudo, que Lula não seria nada sem o PT.

Terceiro, Barros sobrevoa elegantemente as disputas que marcaram a história do partido e de seus governos, identificando com precisão seus méritos e equívocos. As opiniões sobre o PT são tão polarizadas que a sedimentação de diagnósticos sobre seus erros e acertos parece, ainda hoje, uma quimera. Contra isso, o livro menciona as interpretações conflitantes, mas sempre para localizar a pertinência de cada uma delas em situações específicas: se a primeira gestão de Lula se beneficiou do boom das commodities, este é insuficiente para explicar todo o sucesso de sua política econômica.

Por outro lado, se não podemos eximir o PT da culpa nos escândalos de corrupção do Mensalão e da Lava Jato, também não podemos ignorar que eles manifestam tendências estruturais do nosso Estado. Ambos os escândalos são colocados pelo livro em perspectiva histórica e enquadrados como expressões de problemas crônicos de nosso arranjo institucional. Isso não quer dizer que o PT tenha apenas reproduzido práticas do passado: a legenda parece ter aprofundado muitas delas para manter sua coalizão com a direita. Logo, Barros dá um passo importante para a sedimentação de diagnósticos mais ponderados sobre cada um dos feitos controversos do PT.

Lançado antes do resultado eleitoral, o livro ganhou um quarto mérito: com a volta do PT ao poder, é possível ler a obra como um retalho dos desafios que o partido enfrentou, bem como dos que seguem pendentes e dos novos a serem superados: o PT saiu mais forte de 2022 não só por ter ganhado as eleições presidenciais, mas por ter feito a segunda maior bancada na Câmara dos Deputados e eleito vários senadores e governadores. Se o PT tem desafios importantes à frente, a sua morte, tantas vezes anunciada, soa hoje como mero pensamento desejante.

Por tudo isso, PT, uma história deve ser lido como um balanço do passado que aponta os desafios que o governo Lula terá de superar caso queira construir um futuro melhor. No entanto, é justamente na articulação entre esses tempos que a teia traçada por Barros produz nós difíceis de desatar, já que parte importante do livro se assenta na premissa segundo a qual o grande mal da política brasileira residiria no modo como as “forças do atraso” assombram os projetos progressistas, impedindo que o país se desenvolva.

Ecoando perspectivas de Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Florestan Fernandes, Barros parece aderir a uma filosofia da história na qual o Brasil estaria, ao mesmo tempo, destinado a ser o país do futuro, mas condenado a se amarrar no seu próprio passado. Nos seus termos, “a relação do PT com nossos ‘traços feudais’, nosso ‘patrimonialismo’, nosso ‘atraso’ ou como quer que o chamemos é um dos aspectos importantes e mal resolvidos da história do partido”. Esse desafio seria constitutivo de nossa política, como disse fhc: “No fundo, nós [PT e PSDB] disputamos quem é que comanda o atraso”. Para Barros, um dos maiores erros do PT no poder foi subestimar a força do atraso. Ele ecoa um diagnóstico do próprio partido: “A gente inoculou o novo no velho. Só que parece que essa agulha que a gente usou para inocular, ela sai contaminada”, disse Gilberto Carvalho.

As desigualdades sociais são remodeladas a cada ciclo por inúmeros mecanismos de discriminação

Desde o fim do século 19, essa ênfase na “presença do atraso” funciona como uma das chaves interpretativas dos problemas brasileiros. Tudo se passa como se nossos dilemas fossem reflexo de heranças malditas. A localização histórica desses pecados de origem varia de autor para autor: da abolição incompleta da escravidão (Florestan) ao modelo de Estado ibérico trazido pelas caravelas (Faoro), passando pelo nosso processo colonizatório (Buarque de Holanda). Mas tudo se passa como se a emancipação nacional dependesse da liberação do nosso potencial progressista a partir da neutralização das forças do atraso.
 

Explicação insuficiente

É preciso questionar o quanto essa explicação histórica não assassina, ela própria, a história e a política. As assimetrias colossais que marcam nossa estrutura social não devem nos cegar para as grandes transformações do Brasil. Na primeira metade do século 20 deixamos de ser um país rural para nos tornarmos uma nação urbana e industrial: se a desigualdade continuou sendo a tônica na nossa estratificação, é redutor vê-la como resultante apenas da inércia do passado. Ao contrário, nossas assimetrias sociais foram reinventadas, muitas vezes pelos próprios projetos modernizantes: se alguns foram pontualmente bem-sucedidos na equalização de oportunidades e melhoria das condições de vida, outros produziram concentração de riqueza e vulnerabilidades sociais.

Em suma, o Brasil tem problemas não apenas porque partiu de um passado maldito, mas porque nosso processo de modernização contém contradições, como aliás qualquer outro. Mais do que uma jabuticaba ibérica, o patrimonialismo brasileiro expressa a confusão entre interesse público e privado que marca a história do capitalismo em todo o globo. Nossas assimetrias raciais não são apenas heranças da escravidão, mas do racismo corrente em nossas interações cotidianas. As desigualdades sociais são remodeladas e reinventadas a cada ciclo histórico por inúmeros mecanismos de discriminação. O desafio analítico e político que se coloca é menos entender a “sobrevivência do atraso” e mais identificar os mecanismos que reinventam as assimetrias. Só assim poderemos imaginar estratégias de desenvolvimento que articulem politicamente interesses contraditórios na construção de um país mais justo.

Com o retorno do PT ao poder, a leitura do livro se torna urgente. Mas, como Barros frisou, as soluções bem-sucedidas no passado dificilmente serão mecanicamente transponíveis ao novo contexto. O Brasil é outro, o PT também. Por isso o êxito do novo governo dependerá mais de sua capacidade de produzir um projeto nacional criativo e aglutinador do que de uma filosofia da história que busque isolar “o atraso” para liberar “o progresso”.

Quem escreveu esse texto

Luiz Augusto Campos

É professor de sociologia e ciência política no Iesp-Uerj e co-autor de Raça e eleições no Brasil (Zouk).

Matéria publicada na edição impressa #67 em fevereiro de 2023.