Desigualdades,

O preço da paz e a manutenção do progresso

Biografia de Keynes descreve com clareza o amadurecimento intelectual do economista e a relevância atual de suas ideias

27jul2022 | Edição #60

É difícil ignorar o ressurgimento do interesse pela obra de John Maynard Keynes (1883-1946) e seu impacto na forma de pensar a economia. Não é surpreendente, afinal, que o momento em que vivemos — sob os desdobramentos de uma crise financeira internacional, de uma pandemia e da guerra na Europa — sugira um paralelismo com os trinta anos que se passaram entre o início da Primeira Guerra Mundial e o fim da Segunda Guerra Mundial, no século passado.

É nesse contexto que chega ao Brasil O preço da paz, recente biografia de Keynes escrita por Zachary D. Carter, um conhecido repórter de política econômica do Huffpost. Carter faz justiça à expectativa criada pelo momento atual e traz aos leitores a temperatura dos tempos vividos e pensados por Keynes e suas implicações relevantes para o presente.

A ambientação criada por Carter tem duas dimensões muito bem entrelaçadas. A primeira se refere à evolução e à relevância da obra — e do personagem — e à sua influência na política econômica ao longo das décadas subsequentes. Já a segunda se refere aos acontecimentos históricos de um período intrigante, que nunca pareceu tão próximo do atual.

Funcionário do Tesouro britânico, Keynes foi rapidamente reconhecido como um economista brilhante, tornando-se um importante conselheiro em assuntos econômicos já na Primeira Guerra Mundial. Em um episódio marcante, enfrentou o mercado financeiro londrino ao recomendar a manutenção da conversibilidade da libra, e suas sugestões evitaram uma crise de desconfiança na moeda.

Na ocasião, a City de Londres era o grande mercado global e os principais banqueiros defendiam a suspensão da conversibilidade para proteger as reservas do país. Keynes, no entanto, reconheceu que a manutenção da conversibilidade serviria para atrair mais reservas, uma vez que o Reino Unido seria visto como um porto seguro para as finanças internacionais em um mundo de elevada incerteza. Sua estratégia deu certo.

Tratado de Versalhes

Nas negociações do Tratado de Versalhes, que impôs custos de reparação muito pesados aos países perdedores, Keynes defendeu uma solução oposta, que onerasse menos esses países, pois se preocupava com os ressentimentos sociais que seriam gerados pelo acordo. Sua obra crítica The Economic Consequences of the Peace (As consequências econômicas da paz), publicada em 1919, elevou-o a outro nível de influência política, a ponto de ter sido considerado para o Prêmio Nobel da Paz de 1923. O prêmio, contudo, não foi atribuído a ninguém nesse ano nem no seguinte.

Keynes destacou-se também ao se manifestar, em 1925, contra a decisão do então secretário do Tesouro, Winston Churchill, de restaurar o padrão-ouro a uma taxa de conversão apreciada, o que resultou em recessão, como o economista havia previsto. No artigo “The Economic Consequences of Mr. Churchill” (“As consequências econômicas do sr. Churchill”), fica claro que os estudos monetários de Keynes já indicavam que a conversibilidade metálica era desnecessária ao bom funcionamento de uma economia monetária.

Keynes entendia que as economias capitalistas já ofereciam os meios para que as pessoas vivessem bem

Embora sua genialidade fosse inquestionável, o jovem Keynes nutria certa ingenuidade em um mundo imperial no qual o Reino Unido, apesar da clara perda de influência econômica e política, ainda era percebido como o guardião da ordem mundial. A contradição fica nítida em vista do papel dessa liderança política na colonização africana, por exemplo.

Zachary D. Carter descreve com competência a interessante evolução dos trabalhos de Keynes, que compreendia que as economias capitalistas já eram capazes de oferecer todos os meios para que as pessoas vivessem bem — e que isso passava pela manutenção do pleno emprego. A constituição de uma boa sociedade, nos moldes de seu círculo social, era uma condição para uma vida pacífica. Com o tempo, Keynes se convencia de que não bastava ser conselheiro de pessoas influentes: era necessário moldar o pensamento dominante.

Teoria Geral

A necessidade de convencer as pessoas da validade de suas ideias determinou sua atuação política e profissional e culminou com os trabalhos que desaguaram na sua Teoria geral do emprego, dos juros e da moeda, de 1936, que causou uma revolução na forma de pensar a economia e deu início à moderna macroeconomia. 

O preço da paz descreve em detalhe o trabalho de elaboração da Teoria Geral, começando pelo recrutamento de um grupo de jovens e promissores economistas que ficou conhecido como The Cambridge Circus (o círculo de Cambridge): James Meade, Joan Robinson, Richard Khan, Austin Robinson e Piero Sraffa. Carter conta, ainda, como os acadêmicos da Universidade de Cambridge, conduzidos por Keynes, e os da London School of Economics, de orientação mais clássica, se enfrentavam em debates econômicos que eram utilizados para refinar e testar as ideias ali expostas.

A preocupação de Keynes com a inflação ficou bem exposta em How to Pay for the War (Como pagar pela guerra), publicado em 1940. O livro mostra as inquietações do economista com o equilíbrio macroeconômico em uma economia de guerra. Keynes entendia que seria necessária uma grande realocação de recursos em função de disrupções do lado da oferta, que afetariam fortemente os preços relativos da economia, causando inflação. Ao mesmo tempo, ele reconhecia que aumentar a taxa de juros impediria a ampliação da oferta. 

Vale observar que os insights propostos por Keynes nessa publicação são extremamente relevantes para o mundo atual, considerando-se os choques de energia, a necessidade de realocar recursos para lidar com as mudanças climáticas e as sequelas oriundas da pandemia de Covid-19.

Influência nos Estados Unidos

Após tratar do amadurecimento intelectual de Keynes, Carter explora a influência do keynesianismo na política econômica norte-americana. O sucesso das políticas do New Deal contrastava com a pressão empresarial para revertê-las, a despeito do maior lucro das empresas. Difícil não lembrar do clássico artigo de Michal Kalecki “Political Aspects of Full Employment” (Aspectos políticos do pleno emprego), de 1943, que anteviu com precisão a economia política difícil do sucesso do keynesianismo.

O ator principal desse período é John K. Galbraith, que, tendo trabalhado como vice-presidente na Comissão de Preços de Roosevelt, um órgão expoente do controle estatal, se tornou vítima das críticas e pressões de grupos empresariais e políticos de direita por interferir demais no sistema econômico.

Nesse período florescem as fake news do macarthismo, movimento que surgiu na década de 50 a partir de uma aliança entre os políticos republicanos — que buscavam recuperar seu prestígio no cenário nacional — e o grande capital, que temia a excessiva intervenção governamental nos negócios. A prática macarthista consistia em acusar indivíduos de subversão e pressionar para que perdessem seus empregos e não publicassem suas ideias, abafando com isso o progresso no campo liberal. 

Carter mostra como esse movimento foi responsável por impedir as tentativas da época de transformar o livro de Keynes em um manual prático de economia por meio de pressão sobre editoras e universidades. O clássico manual de Samuelson, o primeiro em economia, foi concebido para conciliar a economia clássica com o keynesianismo como forma de escapar desse movimento de censura.

Galbraith se tornou um grande herdeiro das políticas keynesianas, mantendo expressiva influência política no período. Primeiro, com o livro Capitalismo americano, de 1953, tentou conciliar o império corporativo que emerge do pós-guerra com a intervenção governamental para combater o macarthismo. Posteriormente, em A sociedade afluente, de 1958, criticou a dependência financeira da sociedade e revelou seus problemas sociais em uma crítica à esquerda. Sua obra serviu como influência intelectual para vários presidentes norte-americanos, como John F. Kennedy e Lyndon Jonhson, estimulando a Lei de Direitos Civis e o programa de governo The Great Society (A grande sociedade), com forte viés social.

Contradições da doutrina

Nem tudo foi positivo no keynesianismo. O preço da paz explora as contradições da doutrina, forjada em busca de paz e prosperidade econômica no mundo, mas usada como pretexto para justificar a ampliação de gastos militares em períodos de guerra, como na Coreia (1950-53) ou no Vietnã (1955-75). Carter critica com veemência a postura flexível de alguns keynesianos para justificar seus experimentos econômicos. A crítica não é exclusiva a esse grupo, contudo, cabendo lembrar o apoio liberal dado por Milton Friedman à instituição de ditaduras na América Latina. Como a história ensina, economistas também são massa de manobra de governos em busca de garantir seus interesses.

A derrocada do keynesianismo é marcada por um impactante discurso de Joan Robinson em 1973, na American Economic Association. Na ocasião, a economista denunciou os desvios intelectuais cometidos a partir da tentativa de conciliar a teoria keynesiana com a economia clássica praticada por Samuelson. Segundo ela, a incompreensão dos principais pressupostos daquela revolução intelectual e de seus objetivos era responsável pela manutenção da pobreza, da violência e da catástrofe ecológica que recebia o nome de crescimento. No final das contas, os economistas não estavam oferecendo respostas às questões relevantes de seu tempo.

O que diferencia Keynes em seu campo é o esforço por tratar os temas relevantes e dar-lhes soluções livres de preconceitos — o que contrasta com o que vemos nos tempos atuais. Não à toa, foi um jornalista, e não um economista, quem produziu esse que é, possivelmente, o principal tratado de política econômica dos anos 2020 até agora, e que chegou neste ano ao Brasil. Os acontecimentos atuais e seus desdobramentos oferecem uma nova oportunidade para o pensamento econômico e, principalmente, para as sociedades modernas. Essa história ainda está sendo escrita, mas é importante conhecê-la em sua mais ampla dimensão. O livro de Zachary D. Carter oferece uma boa oportunidade para isso.

Quem escreveu esse texto

Manoel Pires

Pesquisador da FGV-IBRE, lançou Progressividade tributária e crescimento econômico (Observatóro de Política Fiscal/FGV-IBRE).

Matéria publicada na edição impressa #60 em julho de 2022.