Desigualdades,

O mundo de ontem

A globalização e as empresas privadas permitiram um imenso avanço material, mas não eliminaram a miséria

01set2023 | Edição #73

Antes de 1870, o mundo vivia na extrema pobreza, com uma população em crescimento e baixa inovação tecnológica. O terror malthusiano pairava sobre nós: o futuro poderia trazer um planeta com recursos cada vez mais escassos. Como solução, o economista John Stuart Mill vislumbrava o controle governamental da fecundidade humana, com a exigência de licenças para procriar. A catástrofe malthusiana, contudo, não se realizou. Hoje o mundo é, em termos per capita, ao menos nove vezes mais rico do que em 1870. Nossos antepassados talvez pensassem que tal riqueza seria suficiente para se construir uma Utopia.

Essa é a grande narrativa proposta por J. Bradford DeLong, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley e ex-secretário do governo Bill Clinton, para introduzir seu livro Slouching Towards Utopia (Rastejando rumo à Utopia). DeLong reflete sobre o chamado longo século 20, que se estende de 1870 a 2010, período marcado pelo grande avanço econômico. 

Em Era dos extremos, Eric Hobsbawm estrutura sua narrativa do “breve século 20” em torno da ascensão e queda do projeto soviético. Já Branko Milanovic se concentra na globalização, enquanto Mahmood Mamdani foca na descolonização e Antony Beevor, nas guerras e conflitos. O foco de DeLong está no enorme progresso material que vivenciamos, que escancara uma contradição: esse crescimento proporcionou a plenitude humana. No longo século 20 de DeLong, houve um aumento do nosso poder produtivo em vinte vezes. Nos dez milênios anteriores a 1500, a capacidade produtiva da humanidade dobrou uma vez a cada três milênios, e dobrou de novo nos 370 anos seguintes.

Em dado momento, J. P. Morgan substituiu os inventores criativos por executivos engravatados

O avanço material que experimentamos, segundo DeLong, só foi possível graças a três fatores: a globalização, a estrutura da empresa moderna e os laboratórios de pesquisa. Essas três forças combinadas levaram à burocratização e sistematização da inovação — “inventaram a invenção”. 

DeLong conta a história de Nikola Tesla, exemplo do “cientista excêntrico”. Tesla foi o inventor do sistema elétrico de corrente alternada, da Bobina de Tesla e ainda pavimentou o caminho para a comunicação via rádio e wireless. Imigrante croata, Tesla encontrou um ambiente propício nos Estados Unidos da primeira década de 1900 — “um lugar muito atraente se comparado a qualquer outro lugar no resto do mundo”.


Slouching Towards Utopia, de J. Bradford DeLong, traz reflexões sobre o chamado longo século 20, que se estende de 1870 a 2010, período marcado pelo grande avanço econômico

DeLong também narra a história de Herbert Hoover: órfão de pai, formou-se engenheiro em Stanford, tornou-se consultor de empresas internacionais e chegou à presidência dos EUA. “Como alguém ascendeu tanto e tão rápido, mesmo na América?”, questiona. 

As histórias de Tesla e Hoover formam o pano de fundo do tema do livro. Apesar do foco na evolução tecnológica e na dualidade de vivermos em um mundo que ainda enfrenta miséria e insatisfação, DeLong apresenta uma narrativa sob a perspectiva norte-americana: os EUA eram um país único, com vasto território, população crescente, imigração diversificada e abundantes recursos naturais.

Em determinado momento, um dos grandes investidores em Tesla, J. P. Morgan, substituiu os “inventores criativos” por executivos engravatados. A sistematização da invenção e a separação de tarefas ajudaram a mitigar os riscos para os mecenas modernos — os bancos. Isso representava a formalização de um sistema de incentivos voltado para a produtividade. Era a hora e a vez dos EUA.

Rumo a Utopia?

O que deu errado? Como conseguimos viver com pobreza e miséria mesmo com todo o progresso tecnológico? DeLong crê que o economista Friedrich von Hayek estava certo ao dizer que os mercados trariam dinamismo e inovação. Porém Karl Polanyi também tinha razão: ele diagnosticou que populações cada vez mais emancipadas queriam protecionismo e bem-estar. 

DeLong afirma que Keynes tentou achar um equilíbrio entre essas duas visões com a ideia de um estado de bem-estar social, quando o mundo, ou parte dele, viveu “trinta gloriosos anos de social-democracia”. Mas teriam as pessoas se tornado vozes ativas na história se não houvesse ocorrido tanto desenvolvimento técnico?

É impossível ler DeLong sem a curiosidade de entender a origem da tríade que ele apresenta como a força motriz do longo século 20 — a globalização, a estrutura da empresa moderna e os laboratórios de pesquisa. Poderíamos nos envolver na eterna disputa entre o materialismo e o idealismo como propulsores da evolução humana. Será que o fim da escravidão não seria uma condição material necessária para o desenvolvimento do capitalismo? Por outro lado, para os defensores do idealismo, podemos supor que esses três fatores, aliados ao fim da escravidão e à consolidação das democracias, só foram possíveis pela solidificação da ideia de liberdade.

Sua Utopia parece ser, porém, o subúrbio branco norte-americano, onde a plenitude poderia ser alcançada por meio do consumo abundante

Pensando nesse pequeno vácuo deixado por esse excelente livro sobre o século 20, somos levados a nos lembrar de Deirdre McCloskey. Ela argumenta que nem a esquerda, com sua ênfase na exploração do trabalhador, nem a direita, com a ideia de acumulação de capital, conseguem explicar a grande melhoria material. Ela defende que o que impulsionou essa expansão foi o fato de as ideias terem se tornado o centro do desenvolvimento econômico. Mas as ideias só conseguem “procriar” quando há liberdade. Talvez seja essa a razão pela qual o enorme crescimento não nos levou à Utopia. A Utopia, como pensada por Thomas More, é um lugar possível quando todos os seres humanos têm dignidade. O ambiente de liberdade que propiciou o desenvolvimento tecnológico do século 20 também nos lembra de que ainda não somos todos livres. Os “trinta gloriosos anos de social-democracia” não foram gloriosos para todos. O enigma que nos cerca não é por que ainda não somos plenos, é como ainda convivemos com tanta pobreza. 

Slouching Towards Utopia evoca uma nostalgia onírica. A obra se assemelha a uma fusão entre O mundo de ontem, de Stefan Zweig, e as séries Anos incríveis e Mad Men. Mas DeLong não está preso à Viena de 1914, quando Zweig sentiu um breve sopro de esperança de um mundo melhor. O autor nos convida a entender que a era moderna nasceu da antítese representada pelo progresso sem redistribuição. 

Sua Utopia parece ser, porém, o subúrbio branco norte-americano, onde a plenitude poderia ser alcançada pelo consumo abundante. Em certas partes do livro é quase possível imaginar o autor numa cozinha de laca amarela, com papel de parede floral e “Son of a Preacher Man” tocando ao fundo. Creio que nós, do sul, talvez nunca tenhamos sonhado com essa Utopia.

Quem escreveu esse texto

Laura Karpuska

Economista e organizadora do livro Reconstrução: O Brasil nos anos 20 - Série IDP (Saraiva Jur, 2022).

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.