Desigualdades,
É a economia, ó parvo!
Estudo sobre as raízes econômicas da Independência reúne dados inéditos e mostra que o Brasil nasceu de uma crise fiscal
01dez2022 | Edição #64Ainda era a madrugada de 26 de fevereiro de 1821, mas o largo do Rocio, atual praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, estava coalhado de soldados — bem providos de pólvora e armas. A revolta teve início com a movimentação das tropas portuguesas estacionadas na cidade, contou com a adesão imediata da população e juntou gente de todas as condições sociais: comerciantes, funcionários públicos, escravizados e libertos, caixeiros, artesãos, um pequeno grupo de ativistas radicais, além de padres, profissionais liberais e vendedores ambulantes. Povo e tropa exigiam a adesão de d. João 6º à futura Constituição do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, cujas bases já haviam sido aprovadas em Lisboa. De quebra, os revoltosos reivindicavam a demissão de ministros e a formação de um novo governo.
O fim do absolutismo e a consequente disputa por poder criaram as condições para o projeto de Independência, escrevem Rafael Cariello e Thales Pereira em Adeus, senhor Portugal
Não era pouco. O fim do absolutismo e a consequente disputa por poder para manter ou não unidos os súditos europeus e americanos criaram as condições para o projeto de Independência conduzido pelo Rio de Janeiro, escrevem Rafael Cariello e Thales Pereira em Adeus, senhor Portugal. Em agosto de 1820, militares portugueses se sublevaram no Porto. Vitoriosa, a revolução convocou as Cortes Gerais e Extraordinárias — o Parlamento luso, reunido pela última vez em 1698 — para aprovar uma Constituição capaz de impor limites aos poderes discricionários do rei, instituir uma monarquia representativa, extinguir privilégios, regular os direitos do cidadão e eleger pelo voto representantes legislativos brasileiros e portugueses.
O impulso revolucionário levou uns seis meses para atravessar o Atlântico, desembarcar no largo do Rocio e incendiar o Paço Real e o palácio de São Cristóvão. Na manhãzinha de 26 de fevereiro, o príncipe herdeiro, d. Pedro, e seu irmão, d. Miguel, na varanda do teatro São João, juraram à multidão revoltada defender a futura Constituição. Horas depois, o monarca se viu obrigado a ceder e acatar, solenemente e em praça pública, o novo governo constitucional.
Cronologia
Adeus, senhor Portugal entrega ao leitor uma análise original e inovadora sobre a forma específica de emancipação assumida pelo Brasil. O livro explora uma cronologia larga, com início em 1808, ano da transferência da Corte para o Rio, e se estende até 1831, ano da abdicação de Pedro 1º. Contar a história da Independência — e da fundação do Império — comandada pelo Rio de Janeiro também exigiu construir uma narrativa que transitasse dos dois lados do Atlântico para recompor o enredo de acontecimentos ocorridos tanto em Lisboa, Londres ou no porto de Falmouth quanto em províncias que compunham o extenso território da América portuguesa — do Grão-Pará, descendo por Pernambuco e Bahia, até a Cisplatina, onde hoje é o Uruguai, ao norte do rio da Prata, precariamente incorporada ao Reino do Brasil.
A Revolução do Porto sozinha não teria sido capaz de criar a conjuntura de insatisfação geral
Como em toda boa história, Adeus, senhor Portugal começa com uma pergunta. Por que naquela data? Entre 1820 e 1821, observam os autores, no Brasil e em Portugal, o clima de tensão e insegurança política só fazia crescer, deixando de sobreaviso as autoridades locais e a Coroa. A Revolução do Porto sozinha não teria sido capaz de criar a conjuntura de insatisfação geral, argumentam os autores. Tampouco levaria a radicalizar e mobilizar tão depressa grupos sociais diversos em levantes em Lisboa, Rio, Salvador e Belém. Então, por que isso ganhou impulso justo na conjuntura de 1820 e 1821 — e não antes ou depois?
A pergunta faz todo o sentido. É certo que a cultura política sofreu mudanças profundas na América portuguesa no período que compreende as três últimas décadas do século 18 e as primeiras do século 19. Foi então que ideias revolucionárias, contrabandeadas da Europa ou originárias da Revolução Americana, desembarcaram nos portos do Rio, Salvador e Recife por meio de livros, jornais ou ainda na conversa de marinheiros. E se espalhavam colônia adentro pelo menos desde 1789, quando a Conjuração Mineira assumiu o formato de movimento insurgente, explicitamente disposto a combater a relação colonial, acusou a Coroa de despotismo e planejou criar em Minas Gerais uma república independente, soberana, autossuficiente. As ideias cresciam à medida que se espalhavam, formando novas e inesperadas teias de conexões, visíveis, sobretudo, em 1794, durante a Conjuração do Rio de Janeiro, e em 1798, na Conjuração Baiana. Uma nova linguagem política já circulava no Brasil no início do século 19, e seu vocabulário, com impacto no debate público por meio da circulação de panfletos e da imprensa, incluía termos como “República”, “Liberdade”, “Constituição”, “Constitucional”, “Liberal”, “Democracia”, “Independência” “Eleitor”, “Voto”, “Cidadão”, “Revolução”.
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Todavia, as ideias atuam em uma temporalidade que não é conjuntural; em contrapartida, os fatores que impactam a população e levam à ação política são circunstanciais e mesmo voláteis, constatam Cariello e Pereira. A potência das ideias é grande, decerto. Elas incorporaram e renovaram temas, modelaram crenças e sensibilidades políticas, projetaram perguntas e polarizaram diferenças. Mas, ao privilegiar o papel das ideias, já não há lugar para explicar a escalada de insatisfações, a prevenção aberta contra o governo e o descontentamento generalizado que contaminaram súditos de todas as classes, em Portugal ou no Brasil. A urgência e o impulso para agir vieram do bolso.
Adeus, senhor Portugal puxa o fio da meada que conta uma história surpreendente da Independência e da fundação do Império. A crise era econômica, e o pavio foi aceso pela rapidez com que essa crise se agravava, dia após dia, produzindo um contexto de grande instabilidade entre 1820 e 1821 simultaneamente no Rio e em Lisboa. A Corte gastava a rodo, as despesas excediam as receitas, o erário real compensava a falta de dinheiro com empréstimos cada vez maiores ao Banco do Brasil. A emissão descontrolada de papel-moeda teve como resultado a inflação, e as consequências foram imediatas para a população: aumento crescente dos aluguéis e dos preços dos alimentos, acompanhado de carestia e crise de abastecimento. Com um detalhe: índices de preços e déficits gerados dois séculos atrás não estavam disponíveis ao historiador. Não deve ter sido fácil, mas Cariello e Pereira reconstruíram e organizaram as séries de dados econômicos do período. Produziram um novo conjunto de fontes para o estudo do mundo luso-brasileiro no início do século 19.
“O Brasil nasceu de uma crise fiscal”, elucidam os autores. A ausência de explicações sobre o papel central das contas públicas é a principal lacuna na historiografia da Independência. Adeus, senhor Portugal inaugura uma vertente arrojada de interpretação acerca do processo de formação do Estado brasileiro que articula a inscrição das ideias naquela situação histórica e os fenômenos econômicos que desestabilizaram a conjuntura política e foram o estopim dos levantes armados e dos enfrentamentos parlamentares que puseram fim ao absolutismo no Brasil e em Portugal.
Economia e política
A crise das finanças públicas e seus efeitos nos preços e salários fornecem o pino sobre o qual gira a dobradiça que articula a análise. Engenhosa, essa dobradiça permite passar da circulação de ideias, que garante sustentação e calibragem aos movimentos revolucionários, à existência de uma insatisfação ampla e difusa, que dispara o gatilho da irrupção da ação política na cena pública. “A relação entre economia e política é uma via de mão dupla. A crise orçamentária que estava na raiz dos problemas econômicos conjunturais do final da década de 1810 e dos anos 1820 era por sua vez resultado do esgotamento das instituições do Antigo Regime que haviam se tornado incapazes de manter um equilíbrio mínimo entre receitas e despesas”, explicam os autores. E acrescentam: “Foi só com o reforço de poderes nas mãos do Parlamento — um processo que no Brasil se completaria muito mais tarde, com a abdicação de Pedro 1º — que as fontes de constante instabilidade econômica e política típicas do absolutismo puderam ser afinal contornadas”.
Adeus, senhor Portugal conta essas duas histórias no que elas têm de enredo, intrigas, incerteza e peripécias. E aponta para o presente. A Independência importa hoje, dois séculos depois, porque recupera os novos significados que os valores políticos ganharam na formação de uma ideia de país que buscava tornar-se realidade. Centralizador em excesso e fortemente conservador, o projeto vitorioso da Independência, concebido sob o bastão da Corte no Rio, bancou e preservou a legalidade da escravidão e a dominação senhorial. Está, portanto, na matriz da configuração do Estado brasileiro.
“Fruto da crise do absolutismo, o Brasil se constituiu como Estado independente não apenas dando as costas a Lisboa”, escrevem os autores, “mas adotando uma Constituição, separando os poderes, instaurando um Parlamento, inaugurando a representação política por meio do voto”. Só em nome desses valores políticos, acolhidos pela primeira vez entre nós dois séculos atrás, será possível, “ainda que de forma lenta e tardia, nos tornarmos um outro país, suficientemente livre das piores heranças da escravidão”. Então, talvez esta seja a hora de ler Adeus, senhor Portugal. Para pensarmos no que estamos fazendo hoje. No Brasil.
Matéria publicada na edição impressa #64 em outubro de 2022.
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