Precisamos falar sobre guerra

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Precisamos falar sobre guerra

Espanhol Ximo Abadía usa cores para tratar das origens dos conflitos a partir do seu elemento fundamental: a discordância

01out2024 • Atualizado em: 30set2024 | Edição #86 out
Ilustrações de Ximo Abadía

Como professor de relações internacionais, a guerra sempre fez parte das minhas preocupações diárias. Entrei para esse universo pouco mais de vinte anos atrás, num momento da história em que os conflitos pareciam distantes da realidade brasileira, concentrados em regiões como África e Oriente Médio.

Como pai de dois, buscando manter a distância entre família e trabalho, fiz de tudo para não trazer essas conversas para a mesa de jantar. Em parte, era o medo de expor minhas crianças e adolescentes ao que há de pior da natureza humana. Mas outra parte era minha própria dificuldade de explicar os porquês de tanta maldade.

A brutal invasão russa da Ucrânia e os horrores da guerra na Faixa de Gaza mudaram essa dinâmica. Agora, meus filhos — assim como usuários de redes sociais de qualquer canto do planeta — recebem informações, vídeos e relatos sobre mortes, sofrimento e destruição. Falar de guerra tornou-se tão inevitável como comentar as eleições municipais ou o último show da Taylor Swift.

A pergunta permanece: como explicar a guerra, suas motivações e consequências, para crianças e adolescentes? A escola, claro, tem um papel central nisso: nas aulas de história, geografia ou filosofia, a partir de ênfases e didáticas variadas, os estudantes tomam contato com as circunstâncias que produzem conflitos ao redor do mundo. É uma forma gradual e segura, digamos, para aprender sobre algo tão essencial a nós, mas aparentemente tão longínquo no tempo e no espaço.

Essa também é uma das tarefas da literatura. E aqui não me refiro somente aos clássicos. Falo da literatura infantojuvenil, acessível a todos que estão em idade escolar. As histórias de Anne Frank, a menina judia assassinada pelos nazistas no Holocausto, e Malala Yousafzai, a garota paquistanesa que se libertou das garras do Talibã para defender os direitos das mulheres, por exemplo, tornaram-se referências incontornáveis para quem quer conversar sobre guerra, sobretudo da perspectiva das crianças.

Origens

Nos livros infantis, a violência geralmente é o pano de fundo onde se desenrolam histórias de esperança e redenção. A proposta de Bum: a guerra das cores, do autor e ilustrador espanhol Ximo Abadía, é diferente: a obra trata das origens da guerra a partir do seu elemento mais fundamental, a discordância.

O enredo parte de dois povoados vizinhos que viviam em paz e que testemunharam o nascimento de duas crianças. De um lado, uma delas cresceu fascinada pelo verde. A outra encantou-se pelo vermelho. Passaram a vida toda acreditando que sua cor favorita era a única possível, até que seus caminhos se cruzaram e a briga entre elas começou.

Do ponto de vista pedagógico, é muito interessante a maneira como o autor constrói a trama. Não há a tentativa de induzir o leitor a ter empatia com os dois protagonistas — que já nascem adultos, de certa maneira — nem com suas causas. Até porque não há causas: o recurso às cores verde e vermelho, que iluminam as belíssimas ilustrações, serve para mostrar que as desavenças podem ocorrer por qualquer divergência de ideias ou gostos particulares.

O verde e o vermelho mostram que desavenças podem ocorrer por qualquer divergência de ideias

O início da narrativa é um convite aos paralelos históricos, que podem muito bem ser trabalhados com os jovens leitores. Pensei imediatamente na disputa entre capitalismo e comunismo, que fez parte da minha própria infância, mas que talvez seja uma referência datada para os dias atuais. A dicotomia pode ser substituída por direita/esquerda, religião/secularismo, cristianismo/islã, a gosto de quem queira guiar a leitura.

Até aqui, o ponto mais importante é que o autor não estabelece juízo de valor entre os lados. As cores evocam neutralidade moral e dizem ao leitor que, a rigor, o problema não reside no conjunto de crenças e valores defendidos por um dos lados.

A questão surge justamente do desencontro: diante da incapacidade de dialogarem sobre suas visões de mundo, os protagonistas embarcam numa jornada de inventar mentiras a respeito do outro. Neste momento, já são adultos, ostentando uniformes, gestos brutos e feições hostis.

As palavras escolhidas por Abadía em suas caracterizações ecoam no imaginário dos leitores contemporâneos. O “outro” são os terroristas e monstros que destroem a natureza e machucam as crianças. Novamente, os paralelos com as narrativas da vida real são inevitáveis, fazendo confluir as guerras ideológicas do passado e do presente. Afinal, o objetivo da desumanização do outro num conflito é sempre o mesmo: produzir insegurança e, em cima disso, o medo permanente.

O autor também evoca o tema atualíssimo das fake news e como elas são utilizadas como instrumento de dominação. A consequência, como escreve, é a substituição da liberdade pela segurança, abrindo caminho para a tomada de poder.

Essa é não só a trágica dinâmica por trás de todos os regimes autoritários ao longo da história, mas também o dilema de muitas democracias atuais, que, paradoxalmente, veem suas liberdades sendo gradativamente suprimidas diante de pessoas temerosas de que suas conquistas materiais e seu estilo de vida sejam abandonados.

A essa altura, sintomaticamente, os personagens já incorporam todos os trejeitos de ditadores. Primeiro, procedem à supressão das cores inimigas. Na sequência, proíbem todas as outras. A partir daí, muros são construídos — outra referência que faz confluir o século passado e o atual — e a guerra começa.

Toda a caracterização da guerra, com poucas palavras e muitas imagens, é poderosa. Aviões, canhões, soldados, dedos em riste e bombas gigantescas surgem em traços infantis, mostrando o alcance planetário da sede interminável por poder. A escalada do conflito faz com que as pessoas saiam das suas casas e o confronto segue entre ditadores sanguinários e solitários.

Uma explosão — “BUM!” — e o cinza dos escombros, da destruição e da erradicação das cores dão o tom sombrio do fechamento do livro. Na guerra total, não há vencedores, nem mesmo aqueles que a deflagraram. O resultado subentendido é a destruição da própria humanidade: primeiro a capacidade de se conectar com o outro, depois a própria espécie humana.

Há livros que ensinam de maneira exemplar, mas não valorizam a dimensão estética do texto ou da ilustração. Há outros que, embora belos, trazem histórias simples, sem grandes lições de fundo. Bum: a guerra das cores é um daqueles livros que mesclam, com primor, a experiência sensorial e a educativa. Comunica, em poucas palavras e com ilustrações vivas, as contradições da natureza humana e o flagelo da guerra. Uma oportunidade para introduzir conversas difíceis com nossos filhos e alunos — e criar neles a consciência de que o diálogo e a empatia devem sempre prevalecer sobre o medo e as armas.

Quem escreveu esse texto

Guilherme Casarões

É professor de ciência política e relações internacionais
na FGV-SP.

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “Precisamos falar sobre guerra”

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