

Biografia,
Retorno impossível
Em ‘Faca’, Salman Rushdie recupera o período que antecede o atentado que sofreu em 2022 e imagina diálogo com seu algoz
01ago2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84Pouca coisa me fascina mais do que a véspera de uma tragédia. O cotidiano está lá, intacto em sua banalidade, até que é cortado por um fato horroroso. John e Jacqueline Kennedy acenando, do carro presidencial, antes que ele tivesse a cabeça estraçalhada por uma bala. Um bombeiro checando um vazamento de gás, numa esquina em Nova York, a segundos do primeiro avião atingir as Torres Gêmeas. Uma família almoçando tranquilamente em casa, durante a Segunda Guerra, antes de ter os corpos despedaçados por um míssil disparado por algum país inimigo. A tragédia é chucra, violenta, vulgar. A véspera é plácida e, como sabemos onde vai dar, assustadora. É a calmaria antes do tsunami, o beijo que antecede o escarro.
Faca, o novo livro de Salman Rushdie, é sobre vésperas. Mais especificamente, sobre a véspera do atentado a faca sofrido pelo autor britânico de origem indiana, em 12 de agosto de 2022, que lhe custou a visão de um olho. Rushdie preparava-se para dar uma palestra em Chautauqua, cidade próxima à divisa do estado de Nova York com o Canadá. O tema, irônica e tragicamente, era sobre a segurança que os Estados Unidos proviam a autores exilados (Rushdie havia passado mais de uma década sob proteção policial, na Inglaterra, depois que seu livro Versos satânicos, de 1988, rendeu–lhe uma sentença de morte — ou melhor, um pedido para que fosse assassinado, por parte do aiatolá Ruhollah Khomeini, do Irã. Khomeini argumentava que o livro, inspirado no Alcorão, havia desrespeitado o islã).
Rushdie diz não ter vivido nada de sobrenatural: ‘O que senti com mais força foi uma profunda solidão’

A véspera sobre a qual Faca trata não diz respeito apenas ao 11 de agosto de 2022, dia anterior ao atentado. Na verdade, o livro descreve um período de felicidade pelo qual Rushdie passava desde que se mudara para Nova York e, de forma mais específica, desde que conhecera a poeta americana Rachel Eliza Griffiths, em 2017, com quem acabaria se casando. “Restavam mais vinte dias de nossa antiga vida”, Rushdie escreve, na primeira metade do livro.
Comecei a planejar uma viagem a Londres para ver minha família. Na quinta-feira, 28 de julho, fiz algumas correções finais de última hora em Cidade da vitória e o livro estava pronto para a impressão. Vimos alguns amigos. Na terça, 9 de agosto, lemos que Serena Williams planejava se aposentar depois do u. s. Open. Fim de uma era, pensamos, como todo mundo. […] Na quarta-feira, 10 de agosto, fomos jantar juntos num restaurante italiano chamado Al Coro. As pequenas coisas da vida cotidiana. […] Então, o mundo explodiu.
O ataque ocorreu na manhã de 12 de agosto, sobre um palco, diante de uma plateia lotada. Durou 27 segundos, período que Rushdie descreve como “nosso momento de intimidade” e durante o qual levou quinze facadas. Ele tinha 75 anos — três vezes mais que seu algoz, um rapaz muçulmano, nascido nos Estados Unidos, de 24 anos de idade (no livro, Rushdie prefere chamá-lo apenas de A., para evitar que tenha qualquer protagonismo). A faca perfurou-lhe pescoço, peito, barriga, perna, e mãos, além do olho direito.
Lembro-me de estar deitado no chão e ver a poça do meu sangue se espalhando a partir do meu corpo. É muito sangue, pensei. E em seguida pensei: estou morrendo. Não era dramático, nem horrível demais. Era apenas provável. E muito provavelmente era isso que estava acontecendo. Era objetivo.
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Rushdie diz não ter vivido “nada de sobrenatural, nenhum ‘túnel de luz’, nenhuma sensação de deixar o corpo”. “O que ocupou minha cabeça, e foi difícil de suportar, foi a ideia de que eu ia morrer longe das pessoas que amo, na companhia de estranhos. O que senti com mais força foi uma profunda solidão.”
Os minutos seguintes foram cruciais. Rushdie se lembra de que um homem pressionou o polegar forte contra o seu pescoço, para estancar o sangramento. “Era um bombeiro aposentado. […] Mas, naquele momento, ele não era para mim um bombeiro aposentado. Era um polegar.” O polegar continuou presente até que Rushdie fosse colocado numa maca e levado a um helicóptero, com destino ao Hospital Hamot, no estado vizinho da Pensilvânia. Conseguiu manter alguma consciência até aterrissar e ter o nariz e a boca cobertos por uma máscara com sedativo. “E depois disso… nada.”
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O escritor perdeu a visão de um olho — que por um tempo ficou pendurado para fora da órbita, “como um grande ovo cozido”, e um pedaço do intestino delgado. Teve o fígado perfurado e o coração tocado pela faca. A bochecha direita e o pescoço foram remendados com grampos metálicos. Ficou dois dias entubado.
Na tarde de 13 de agosto, resolveram remover a entubação. Saiu aquela cauda de tatu e foi tão confortável como soa. […] ‘Consigo falar’, eu disse. Foi o começo da reação. Para Eliza, foi o começo da esperança. Eu estava vivo, conseguia respirar, e todo o resto voltaria com o tempo. (Nos recusamos a pensar talvez. Recusamos totalmente o talvez. Não haveria talvez. Havia apenas sim.)
Rushdie permaneceria dezoito dias internado no hospital da Pensilvânia, num quarto sem espelhos, antes de ser transferido a uma unidade de reabilitação na cidade de Nova York, onde ficaria por mais um mês. “Quem é você?”, ele escreve, quando finalmente consegue ver a própria imagem. “Eu ao menos te conheço? Em algum momento você vai se transformar em mim ou é isso que me resta agora, esse semiestranho de cabelos emaranhados e com um olho só?” Era o começo de uma nova vida, ou, como define, de uma reabilitação não só do corpo, mas também “da mente e do espírito”.
Outra faca
Preciso fazer uma pausa aqui para me apresentar. Tenho 42 anos, sou jornalista. Dezesseis anos atrás, durante minha primeira passagem pela revista piauí, como repórter, também fui esfaqueado. Também no olho direito. Era uma quarta-feira de junho, por volta das 19h. Eu caminhava da redação, que ficava no bairro da Glória, no Rio de Janeiro, em direção à estação do metrô. Aproveitei o trajeto — curto, mas escuro e pouco frequentado — para ligar, a um amigo, pelo telefone celular (naquela época, telefones ainda eram usados para telefonar). Nisso uma sombra se aproximou por trás. A sombra tentou tirar o telefone da minha mão — era um Nokia branco, barato. No reflexo, eu puxei minha mão de volta. A sombra começou a me agredir. Achei que eram socos, até que meu olho direito ficou com a visão subitamente preta. Soltei o telefone e vi, então, que a sombra segurava uma faca. Era uma faca pequena, de cortar fruta. Eu não vi a cara do menino. Acho que ele era branco. Acho que estava sem camisa. Acho que usava uma bermuda amarela. Acho que tinha menos de vinte anos. Ele correu, e eu fiquei alguns segundos olhando para o chão, procurando pelo meu olho (a faca o havia atravessado, de um lado a outro, abrindo dois cortes, mas descobri, ao voltar para o edifício onde ficava a redação, que ele seguia na minha cara).
Sou jornalista. Dezesseis anos atrás, também fui esfaqueado. Também no olho direito
Precisei passar por duas cirurgias naquele mês, e uma terceira no ano passado, mas tive a bênção de manter a visão preservada. “Bênção”, nesse caso, é uma mistura de acaso (a faca não pegou em nenhuma parte vital do globo ocular), direito trabalhista (eu tinha um bom plano de saúde, que me proporcionou ir a um bom hospital) e privilégio social (meu pai conhecia ótimos médicos, que me operaram). Devo o final feliz à destreza do meu oftalmologista, o doutor Mário Motta (não é merchan, é gratidão) e a algo mais profundo, da ordem do mistério (se a faca tivesse mudado o rumo em milímetros, eu poderia estar cego). O caso foi um divisor de águas na minha vida, mas não de maneira traumática. Pelo contrário: sou grato pela chance de ter sobrevivido e de ter recebido tanto amor.
Minha história é menos dramática que a de Salman Rushdie. Não fui vítima de um crime de ódio. A faca que me perfurou o olho — e também a pele sobre peito e costela, de forma superficial — não tinha nenhuma densidade. Era o trivial tosco da violência brasileira, fluminense, carioca. Tanto faz quem foi o autor, tanto faz quem foi a vítima. Não havia enredo, gozo, drama, catarse, apenas um celular vagabundo sendo roubado, vida que segue até o próximo roubo e a próxima facada.
Incel americano
O caso de Rushdie é bem diferente. A lâmina da sua facada começou a ser fundida 36 anos atrás, com a fatwa ordenada pelo aiatolá. Depois, viajou lentamente no tempo e no espaço até cair nas mãos de um incel americano de 24 anos, que odiava Rushdie pelos Versos satânicos, apesar de nunca ter lido os Versos satânicos. “Acho que você nem tinha certeza se ia mesmo fazer aquilo até eu chegar ao palco e você se levantar da cadeira e vir para cima de mim”, escreve Rushdie, imaginando um diálogo com seu algoz.
E então seus pés correndo o levaram a um ponto sem retorno e não havia mais como parar. Você se viu bem na minha frente e lá estava eu: a realidade. A realidade real e honesta sobre seus dois pés, encarando você, olhos nos olhos. Havia eu e havia todas as suas outras realidades também, sua solidão, seus fracassos, suas decepções, sua necessidade de culpar alguém, seus quatro anos de doutrinação, sua ideia de Inimigo. Eu era todas essas coisas, e você começou a esfaquear e achou que era aterrorizante, achou a sensação boa e aterrorizante ao mesmo tempo. Tenho certeza de que sentiu medo. Morreu de medo. Porque era você que vivia num mundo de ficções e agora enfrentava as consequências de ser conduzido por suas ficções ao mundo real, ou seja, ao homicídio e à sua própria vida arruinada.
Desde aquele 12 de agosto de 2022, A. segue preso, de forma provisória, enquanto aguarda o julgamento. Ao longo do livro, Rushdie imagina longas conversas com ele, o que o ajuda a transformar um certo desejo por reencontrá-lo num sentimento de desprezo.
Sua intrusão na minha vida foi violenta e prejudicial, mas agora eu a retomei, e ela está cheia de amor. […] E, se algum dia pensar em você no futuro, será com um desdém indiferente. Eu não o perdoo. Também não o considero imperdoável. Você é irrelevante para mim, simplesmente.
Como último ato, Rushdie volta com sua esposa, Eliza Griffiths, a Chautauqua. “Era algo que eu precisava fazer por mim mesmo: regressar à cena do crime e me sentir de pé outra vez, saudável e forte.” No caminho, se pega pensando com saudade sobre o dia 11 de agosto. “Eu queria terrivelmente ser, mais uma vez, aquele sujeito despreocupado observando a lua cheia sobre o lago, um escritor com um novo romance a ser lançado em breve e um homem apaixonado. Seria isso que essa viagem de volta poderia evocar?” Conclui: “Talvez estivesse a caminho de Chautauqua para enfrentar o fato, intolerável, comum a todo ser humano, de que o passado nunca mais voltaria.”
Era o seu reencontro com uma véspera que não existe mais.
Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.
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