Arte e fotografia,

Revelações do dilúvio

"Sub/emerso" joga-se no confronto de Bob Wolfenson com o seu corpo de trabalho e com a destruição desse corpo

01jul2020 | Edição #35 jul.2020

O banco caído, atirado para um canto, da capa do livro, e a imagem abstracta que se segue em página dupla não são, percebemos, cenografia ou pintura, mas o que restou de uma catástrofe. Algumas coisas, porém, só o dilúvio revela. Wolfenson abraçou os escombros e, numa epifania, deu conta da revelação de um novo arquivo sobre o seu arquivo. A água revelara de novo as imagens, modificara-as, iluminando o interesse de fotos que o autor considerara desimportantes e guardara por “inépcia preguiçosa”, transformando aos seus olhos, ou arrasando, imagens que lhe eram queridas. 

Sub/emerso joga-se no confronto de Bob Wolfenson com o seu corpo de trabalho e com a destruição desse corpo, com a forma como a destruição dá lugar a um outro corpo (eis um homem em tronco nu, diante da câmara, lado a lado com o testemunho da destruição do estúdio, no belíssimo texto de abertura intitulado “Sobrememória”). “Um escorrimento, impregnado na superfície delas, criara uma ‘sobrememória’, pois elas em si já eram lembranças de outras épocas. Carregadas agora desta herança, algumas destas fotografias […] perderam seu caráter bidimensional e encontraram uma materialidade acidental advinda de sua colisão com as águas.

Penduradas em varais no processo de secagem e postas lado a lado aleatoriamente criaram um novo conjunto. E unidas pelo seu esgarçamento, ganharam uma nova graça, um novo sentido.” 

Banhos arbitrários

Não importa apenas que a água tenha arrasado o estúdio, mas que a tragédia tenha abarcado grande parte do corpo de trabalho. Como película revelada por banhos arbitrários, o arquivo, enquanto conjunto, transformou-se enquanto totalidade, unido pelo dilúvio como o trabalho de um artista se une pela constância de tom, luz, equilíbrio cromático, formato e técnicas de revelação e ampliação. Se não são as fixações do fotógrafo o que guia a sobrememória, mas a arbitrariedade da água, que não toma decisões de ordem estética, ainda assim a água pinta sobre o olhar de alguém, preservando, na acção involuntária, a constância tonal que guiara o arquivo ao longo dos anos.

“Sobrememória” é um processo pontual como uma intempérie, nos antípodas da acção da passagem do tempo sobre a matéria de que são feitos os arquivos, e no entanto a sua acção tem a marca transformadora que só a natureza consegue imprimir, de um instante ao outro. Folheamos Sub/emerso e as celebridades nos são mostradas desbotadas e pontilhadas de manchas, as poses, os corpos seminus, as provas de contacto, vêm de um tempo outro, mais antigo ainda, como fotografias encontradas no fundo de um rio. Quantos séculos são uma única onda do rio Pinheiros, que nem décadas guardadas num estúdio deixariam um arquivo do nosso tempo tão de outrora e subitamente velhas de séculos e séculos as estrelas da nossa era?

Cristiano Mascaro estabelece uma precisa distância entre fotógrafo e fotografado, esse lugar virtuoso entre o excesso e a falta

É também sobre nós e o que consideramos o presente, a nossa consciência do tempo e do nosso lugar nesse tempo, que Bob Wolfenson opera em Sub/emerso. Os rostos retratados são de hoje, da nossa vida, ou anónimos nos quais reconhecemos uma fácies contemporânea, mas diante da rasura, do “escorrimento”, é a própria fácies do presente que nos é revelada na sua permeabilidade à acção da natureza e à sucessão das eras, na sua condição de arquivo, mesmo que ainda estejamos vivos e que seja de belos, jovens e felizes a maioria dos rostos que reconhecemos em Sub/emerso. Algumas coisas só o dilúvio revela. Entre elas, a transitoriedade do presente e das nossas anotações à margem do presente, a nossa condição temporária, o passado imanente das nossas caras e das caras que nos habituámos a ver, e a sua condição simultaneamente sincrónica e espectral.

Tal como cada uma das pessoas em cada uma das fotografias, o leitor é reconduzido, em 2020, à condição de figura de um daguerreótipo, de volta à origem da fotografia. O poder revelador do dilúvio está em nos lembrar de que também nós — a nossa vida, corpo, cara, época — somos arquivo. Saímos menos seguros de que estamos a salvo da destruição e sem sabermos se alguém encontrará na nossa destruição, uma vez submersos, um novo sentido e uma nova beleza.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #35 jul.2020 em maio de 2020.