Arte e fotografia,

Ouro na caixa de sapato

Fotolivros mostram preciosidades garimpadas durante a quarentena no acervo de oito craques da fotografia brasileira

01jul2020 | Edição #35 jul.2020

A quarentena tem sido um momento interessante para a fotografia, em especial o fotojornalismo, que por meio de coletivos e repórteres independentes vem documentando e dando significado à experiência de estar isolado em casa e ver as cidades vazias. Em outra direção, o isolamento também é convidativo para um olhar mais demorado para os acervos de imagens que acumulamos na era digital, seja em fotos armazenadas em nossos smartphones, seja em uma velha caixa de sapatos que guarda fotos antigas.

O fotógrafo Lucas Lenci e o designer André Matarazzo enxergaram essa possiblidade poética aberta pelo isolamento para lançar a coleção Quarentena Books, que reúne fotolivros de oito craques da fotografia brasileira, a partir de seus acervos e tendo como ponto de fuga a ideia de distanciamento social. Foram buscados fotógrafos de perfis diferentes, cidades diferentes, gerações diferentes. "A escolha dos fotógrafos foi feita a partir da possibilidade de reinterpretação. Eu queria que os fotógrafos reinterpretassem coisas que ele tinham feito". Oito feras do design foram convidadas para conceber graficamente cada volume. 

O projeto certamente jamais teria sido realizado no período "velho normal". Aproveitar o tempo ocioso dos editores, autores e designers — todos eles muito atarefados até meados de março — foi o gatilho, segundo Lenci: "Eu pecebi que a única commodity que eu tenho para vender, que é o meu tempo, ia sobrar". (Neto do fotógrafo Peter Scheier, Lenci acaba de lançar, pela Fotô Editorial, o livro Still Life, impressionante ensaio fotográfico sobre animais empalhados que, visto agora, tem tudo a ver com a quarentena. A taxidermia não deixa de ser uma metáfora da nossa condição de aves empalhadas.)

As equipes que realizaram os livros jamais se encontraram fisicamente, e os exemplares não vão passar pelas livrarias — mas não porque estas ainda estejam quase todas fechadas. A venda é feita pelo site do projeto e os exemplares são produzidos sob demanda pela gráfica e editora Ipsis com uma nova tecnologia de alta qualidade de impressão. O box com a coleção completa vale R$ 450, e os exemplares individuais, R$ 60 cada um. Quase metade do valor obtido nas vendas será revertido para projetos voltados a populações vulneráveis à pandemia de Covid-19.

Mas há uma diferença em relação a uma tendência pós-pandemia: a digitalização inexorável de tudo. Embora tenha sido fundamental utilizar meios digitais para realizar o projeto, as imagens vêm, em grande parte, de meios físicos e são publicadas em edição impressa. O box que reúne os Quarentena Books guarda uma relação com a caixa de sapatos onde se guardam velhas fotos.

"O digital parece mais seguro, se você olhar com a perspectiva do que aconteceu com o Bob", diz Lenci, em referência à inundação do estúdio do fotógrafo paulistano. "Por mais que a gente troque de HD de dois em dois anos, faça backup, os cabos vão mudando, o computador não vê. O meu avô, que morou no Brasil por quarenta anos, trabalhou, quando foi embora entregou pra Fundação Abril, e lá ficou por mais vinte anos até o Instituto Moreira Salles pegar, negativo é negativo, é físico, não tem porta USB, não tem que ligar na tomada. É a teoria da caixa de sapato que já ouvi de um especialista brasileiro: por mais que você maltrate a caixa de sapato, que você molhe, a matriz está lá. O digital passa uma falsa sensação de segurança."  


[Claudia Jaguaribe]

Com uma pauta tão jornalisticamente quente como o isolamento e a pandemia, apenas Claudia Jaguaribe produziu as imagens de seu livro para o projeto Quarentena Books. Os demais se voltaram para os seus acervos, aproveitando o tempo disponível e olhar sobre a própria obra transformado pela encomenda de Lenci — ou, no caso de Bob Wolfenson, a própria obra literalmente transformada em outra coisa depois deste trágico ano de 2020.

O pano de fundo dessa iconografia do isolamento é a cidade, explorada em diferentes dimensões e aproximações pelos fotógrafos convidados: a ideia de distância demarca os espaços da vida privada, que podem ser barracos de madeira ou lotes de residências de classe alta, mas também traz novos significados sobre os espaços públicos — saturados de gente, como o piscinão de Ramos fotografado por Daniel Klajmic, ou de carros, aviões e pistas de rodagem, como nas cartografias caleidoscópicas de Cássio Vasconcelos. Como serão o nosso convívio público e a nossa vida privada a partir de agora? — eis a interrogação que paira sobre os Quarentena Books.


[Rodrigo Koraicho]

Claudia Jaguaribe, mestra na arte de clicar paisagens do Rio de Janeiro, voltou-se para as fronteiras que dividem os lotes das casas onde mora a burguesia paulistana. O livro dela, Vizinhos, estabelece um forte diálogo com o de Rodrigo KoraichoÔ culpa, que questiona a sensação de confinamento da classe média com abafadas imagens de barracos de madeira onde a população pobre se amontoa em São Paulo. O editor da Quatro Cinco Um Mauricio Puls, crítico de arte e arquitetura, resenhou os dois fotolivros, que para ele representam os dois extremos da "polarização que persiste até hoje". Mariana Jaguaribe é a designer do livro de Claudia, e Raphael Ferraz assina o de Koraicho.


[Cássio Vasconcellos]

Com suas composições labirínticas e fractais de áreas urbanas vistas de cima, Cássio Vasconcellos nos leva em seu fotolivro à hoje proibida vertigem das alturas. Suas fotos ganharam um desconcertante realismo em tempos de quarentena. Algumas de suas imagens mais conhecidas, com as que mostram espaços saturados de aviões e automóveis, parecem ter antecipado algumas cenas vistas em tempos de isolamento, com a frota de todas as companhias aéreas do planeta obrigada a se manter pousada nas pistas dos aeroportos, as filas intermináveis em estacionamentos de hipermercados nos Estados Unidos, os pátios de locadoras e montadoras repletos de carros vazios. Em tempos de interdição a um ato que havia se tornado banal — voar — as vistas aéreas do trabalho de Vasconcellos atiçam a nossa atenção como a de uma criança que olha pela janelinha do Boeing.

Em PiscinãoDaniel Klajmic mergulha em outra paisagem proibida em dias de Covid-19: a imensa praia articial de Ramos, no Rio de Janeiro. Nada mais contrastante com a ideia de isolamento social que a muvuca em cores vivas que o fotógrafo registrou num dia de sol e muito calor. Na resenha do fotolivro, que tem design de Edu Hirama, a colunista da Quatro Cinco Um Djaimilia Pereira de Almeida, afirma que com essas fotos de treze anos atrás "Klajmic relembra-nos a natureza política da proximidade e do ócio".


[Daniel Klajmic]

Uma das linhas de força dos Quarentena Books é o retrato: cinco dos oito livros privilegiaram essa arte.

Uma das boas surpresas dessa vertente é conhecer uma espécie de "lado B" da obra de um mestre da paisagem. Cristiano Mascaro apresenta em seu fotolivro Apenas retratos uma série de imagens que aparentemente contrastam com as paisagens urbanas e os elementos arquitetônicos que o consagraram.


[Cristiano Mascaro]

Em sua resenha, o fotógrafo Tuca Vieira nota que Mascaro "se utiliza da presença do corpo humano como elemento composicional de suas fotografias, levando para a arte do retrato os anos de experiência como fotógrafo de arquitetura". A imagem, segundo Vieira, "fala ao mesmo tempo daquela pessoa, da profissão que exerce, do ambiente em que vive e da cidade em que habita, perfazendo um arco que termina novamente na paisagem urbana". Julio Mariutti foi o designer convidado. 

A carioca Ana Carolina Fernandes retratou figuras urbanas que vivem em eterno isolamento social: as travestis da Lapa, região do centro do Rio. Para comentar as fotos, a revista dos livros convidou a crítica literária Amara Moira, para quem a fotógrafa "soube usar seu ensaio para construir uma ponte entre esses dois mundos, o travesti e o cis".


[Ana Carolina Fernandes]

O ensaio que deu origem ao fotolivro Cinderela foi realizado em 2013, no Casarão de Luana Muniz, a Rainha da Lapa, um "espaço de ocupação travesti" no Rio de Janeiro. O livro, que tem projeto gráfico de Bruno di Celio, traz um texto crítico do fotógrafo e editor Eder Chiodetto.


[Paulo Fridman]

Paulo Fridman apresenta retratos de tipos da Nova York dos anos 1980, período de efervescência do hip hop e da cultura de rua. As imagens ganham força nos dias de hoje, com os protestos antirracismo que tomam as cidades dos EUA desde a morte de George Floyd. Nestes retratos, a cidade também é protagonista.

O mesmo se pode dizer do fotolivro de Bob Wolfenson, que tem design de Pedro Gerab e é o único do conjunto que traz imagens produzidas em estúdio profissional — espaço de isolamento por excelência. Ironicamente, a cidade não aceitou: acabou roubando o protagonismo das estrelas clicadas por Bob ao invadir o quadro e manchá-lo com sua água suja.


[Bob Wolfenson]

Esta edição da Quatro Cinco Um traz textos sobre alguns desses fotolivros.

 

Quem escreveu esse texto

Paulo Werneck

É editor da revista Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #35 jul.2020 em maio de 2020.